A nova legislação que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), permitindo a construção de habitações “a custo moderado” em solos rústicos, está a ser fortemente contestada por especialistas de vários sectores. Investigadores e ambientalistas denunciam as falhas e lacunas do diploma que, garantem, não protege os solos de Portugal. Mas, para a ministra do Ambiente e Energia, Maria da Graça Carvalho, as excepções previstas no novo RJIGT garantem que “estão salvaguardados os principais valores naturais do território”. Há “mecanismos de aprovação, licenciamento e fiscalização que visam controlar uma expansão urbana indevida”, garante o ministério.
O novo diploma foi promulgado em Dezembro por Marcelo Rebelo de Sousa, que desde logo não se absteve de o considerar “um entorse significativo [sic] em matéria de regime genérico de ordenamento e planeamento do território, a nível nacional e local”. Não o vetou, mas deu o pontapé de saída para uma polémica que parece não ter fim.
O decreto-lei, publicado em Diário da República em Janeiro, deverá entrar em vigor no final deste mês, se a discussão parlamentar solicitada pelos partidos de esquerda – já agendada para dia 24 de Janeiro – não colocar um travão na alteração legislativa proposta pelo Governo. No diploma constam três assinaturas: a do primeiro-ministro, Luís Montenegro, do ministro adjunto e da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida, e de Miguel Pinto Luz, ministro das Infra-Estruturas e da Habitação. E o Ambiente, onde fica?
A nova legislação é dirigida à reclassificação de solos rústicos: terras com características naturais adequadas para aproveitamento agrícola, mas também para a conservação, valorização e exploração de recursos naturais, de recursos geológicos ou de recursos energéticos e que podem até servir para a protecção de riscos. Apesar disso, a assinatura de Graça Carvalho, ministra do Ambiente e Energia, não consta no documento publicado no início deste mês.
Ministra destaca "carácter excepcional das alterações"
O PÚBLICO questionou o ministério sobre as ameaças ao ambiente que este diploma pode representar e sobre a sua participação no processo legislativo. A resposta por e-mail às várias questões colocadas é sucinta: “As alterações introduzidas ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) visam possibilitar, a título excepcional, a criação de áreas de construção em solos compatíveis com áreas urbanas já existentes, obedecendo a uma lógica de consolidação e coerência, continuando a vigorar a proibição de construção em unidades de terra com aptidão elevada para o uso agrícola (nos termos da Reserva Agrícola Nacional (RAN)) ou em áreas de relevo ambiental”, começa por referir o gabinete da ministra do Ambiente.
De resto, o ministério reforça que “a reclassificação para solo urbano prevista no presente artigo não pode abranger áreas integradas no Sistema Nacional de Áreas Classificadas (como parques e reservas naturais), nem áreas classificadas nos termos do regime jurídico da Reserva Ecológica Nacional (REN)”.
E, por isso, conclui: “No entendimento do Ministério do Ambiente e Energia estão salvaguardados os principais valores naturais do território, devendo ser enfatizado o carácter excepcional das alterações introduzidas, continuando a vigorar diversos instrumentos de planeamento e mecanismos de aprovação, licenciamento e fiscalização que visam controlar uma expansão urbana indevida.”
Assunto encerrado no que ao Ministério do Ambiente diz respeito, mas não para muitos ambientalistas e investigadores que não desistem de alertar para a ameaça ambiental que as novas regras do Governo podem representar. Desde o problema da impermeabilização dos solos até às omissões do regime de excepções para algumas zonas de risco, há muitas e ruidosas reservas.
Argumentos que caem por terra
A alteração legislativa, já o disse e escreveu o ministro Manuel Castro Almeida no PÚBLICO, “tem um único objectivo: aumentar a oferta de terrenos para construir habitação como forma de baixar o preço das casas”. “Uma mudança estrutural”, resumiu. Porém, o argumento fica enfraquecido quando olhamos para os dados sobre a actual situação do território português.
“Apesar de, em 2023, o solo rústico ocupar 92% da superfície continental, em alguns municípios metropolitanos a sua área era nula (Lisboa, Amadora e Porto) ou constituía menos um quarto do território municipal (Oeiras e São João da Madeira)”, refere o Relatório do Estado de Ordenamento do Território (REOT) 2024, divulgado recentemente. Ou seja, o proclamado objectivo de uma maior oferta de terrenos nos grandes centros urbanos, onde a habitação é um dos principais problemas, cai por terra.
Resta, então, olhar para a periferia desses concelhos densamente povoados. Porém, numa aparente contradição, o Governo garante que não se pretende criar novos centros urbanos. “A lei agora aprovada autoriza a reclassificação de solos numa lógica de consolidação das áreas urbanas existentes, não criando novos centros urbanos, e desde que não abranja certas categorias de solos da Reserva Agrícola Nacional (RAN) ou da Reserva Ecológica Nacional (REN). É evidente que em solos com elevada aptidão agrícola ou com riscos ecológicos relevantes não será possível construir”, responde o ministro da Coesão Territorial, no artigo do PÚBLICO. Isso não chega, reagem os críticos.
Cartas abertas, centenas de assinaturas
Numa carta aberta dirigida ao Governo e à Associação Nacional de Municípios no final de Dezembro, um grupo de investigadores já alertava para as “consequências gravosas e duradouras sobre todo o território rural português” desta recente alteração legislativa. A decisão, lembram, “vai frontalmente contra as orientações estratégicas e legislação emanadas da Comissão Europeia, nomeadamente o Pacto Verde Europeu, a Lei Europeia de Restauro da Natureza, a Lei Europeia de Monitorização dos Solos, e a estratégia para os solos expressa no Pacto para o Solo na Europa”.
Por outro lado, há a questão do indesejado aumento da impermeabilização dos solos. Sobre isso, o REOT 2024 adianta que, “em 2018, a proporção de solo que não se encontrava impermeabilizado ultrapassava os 90% na grande maioria das NUTS IIII do continente”. “Contudo, em seis municípios das áreas metropolitanas, a análise a este indicador evidencia valores inferiores a 60%”, acrescenta-se.
Na referida carta aberta, os especialistas notam que entre as metas com vista à melhoria da saúde dos solos da Europa até 2050 estabelece-se “que se ponha linearmente fim à impermeabilização de mais solo por construção, devendo esta ser limitada aos solos já urbanizados”.
Os investigadores trouxeram ainda o ponto de vista da conservação da natureza e da biodiversidade e da qualidade paisagística, ao concluir que “esta nova lei corresponde a um significativo risco de degradação”. “Terá impactes na resiliência dos nossos ecossistemas e dos serviços de ecossistemas a estes associados”, avisavam.
“Não há que optar entre habitação e ambiente”
Entretanto, há uma nova carta aberta lançada pela Rede de Estudos sobre Habitação (Rede H) e que, desta vez, reuniu em apenas três dias mais de 600 assinaturas de especialistas ligados à habitação, ao desenvolvimento urbano e territorial, à floresta, à agricultura e ao ambiente. O artigo foi publicado no PÚBLICO com o título Urbanização em solos rústicos: retrocesso de décadas, assente em falsos álibis.
Se nos centrarmos apenas no impacte ambiental desta alteração legislativa, os muitos signatários notam, por exemplo, que “não há que optar, como alguns afirmam, entre habitação e ambiente: a contenção dos limites urbanos é tão fundamental para a qualificação do habitat quanto para a salvaguarda ambiental”.
E escrevem mais: “Em Portugal, 54% dos terrenos agrícolas já estão degradados e apenas uma pequena parcela apresenta elevado potencial agrícola. O licenciamento de construções em solo rústico aumentará a nossa dependência alimentar, levará à destruição de florestas e à necessidade de infra-estruturas adicionais, agravando o impacto ambiental.”
Em resumo, os autores e subscritores do documento concordam que “esta alteração não ajudará a resolver a crise da habitação e imporá elevados custos sociais, ambientais e económicos para o Estado e para as populações”.
Uma questão de vida ou morte?
Sobram os receios que caem na frente ambiental deste diploma. O geógrafo José Luís Zêzere, director do Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, também depara com um “retrocesso e desrespeito pelo ordenamento do território e pelo esforço feito pela administração pública nas últimas décadas”.
“Não temos um território perfeito do ponto de vista do ordenamento do território, longe disso, mas já esteve muito pior do que está agora”, refere ao PÚBLICO, temendo pelas consequências deste novo diploma que “ultrapassa os limites do bom senso”.
No entanto, a principal preocupação do investigador está no seu principal objecto de estudo há 40 anos: as áreas de instabilidade de vertentes que não constam do regime de excepções da lei proposta pelo Governo.
José Luís Zêzere fala de áreas que, devido às suas características de solo e subsolo, declive, dimensão e forma da vertente ou escarpa e condições hidrogeológicas, estão sujeitas ao risco de deslizamentos ou desabamentos de terra. São, no fundo, zonas de risco no território que estão incluídas em zonas de REN e RAN e devidamente sinalizadas pelas entidades.
“Há muito pouca noção dos processos naturais envolvidos nisto. São processos perigosos, que matam pessoas”, avisa, sublinhando que a proibição de construção nestas áreas não está salvaguardada, ao contrário do que acontece, por exemplo, com áreas de risco de inundações.
“Quando der para o torto, quando chover muito ou houver um sismo e tivermos pessoas soterradas, quem tem a responsabilidade? Muito provavelmente a culpa será da chuva e dos fenómenos extremos associados às alterações climáticas”, antecipa com ironia, rematando em tom sério: “É sempre complicado tirar pessoas debaixo das pedras, principalmente quando sabemos onde as pedras vão cair.”
“Não faltam solos urbanos para construir em Portugal”, constata ainda José Luís Zêzere, que propõe ao Governo que “mexa nos prédios devolutos e na recuperação do edificado” para resolver o problema da habitação nos centros urbanos. “É só uma questão de ter vontade.”
“Equilíbrio do sistema ambiental”
Excluindo a oposição política, há muitas outras vozes que se juntam ao coro de críticas. A associação ambientalista Zero também está contra as mudanças na lei. Esta semana, em comunicado, defendeu que as áreas de REN onde se poderá construir são “inaceitáveis”.
Entre as zonas “absolutamente críticas” que ficaram fora do regime de excepção, a associação aponta áreas estratégicas de infiltração e de protecção e recarga de aquíferos, as áreas de elevado risco de erosão do solo e também as já referidas áreas de instabilidade de vertentes, que servem para prevenção de riscos naturais.
Além de um artigo no PÚBLICO intitulado A grande entorse, onde denuncia a discreta aprovação do diploma sem o “devido escrutínio cidadão, sem debate público e sem passar pelo Parlamento”, a ex-autarca e arquitecta Helena Roseta destaca também o contributo das novas regras para o prejuízo do ambiente.
Numa entrevista ao podcast P24, publicada na segunda-feira, Helena Roseta defende, entre outros argumentos, que as emissões resultantes de novas construções seriam evitáveis se a opção para resolver o problema da habitação fosse a reconstrução e reabilitação do edificado que já existe.
O polémico diploma, alerta, "é uma porta aberta a abusarmos de solo que não deveria ter esse destino [construção de habitações], os solos rústicos devem permanecer como tal porque são necessários para o equilíbrio do nosso território, do nosso sistema ambiental".