Construir saúde
O reforço e capacitação da rede de Cuidados de Saúde Primários é um investimento estratégico com retorno significativo a médio prazo.
Em Portugal, mais do que noutros países, temos muita tendência a rejeitar o novo pela simples inércia do "deixar estar", criticando o que está mal sem avançar para a mudança.
Em 1979, quando se fundou o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a taxa de mortalidade infantil era de 26‰ e a esperança média de vida à nascença era de 67,1 anos. Em 2023, a taxa de mortalidade infantil caiu para 2,5‰ e a esperança de vida aumentou para 81,2 anos. Crianças que não sobreviveriam são hoje jovens e adultos com potencial de vida. Pessoas que morreriam precocemente atingem hoje idades avançadas. Mais gente disponível é maior força de produção do país. O SNS equilibrou diferenças regionais e garantiu a todos a oportunidade de viver mais anos com qualidade, com produtividade e naturalmente com saúde. O SNS foi a maior conquista da democracia.
O sucesso tem consequências. Antes a prioridade era combater as doenças agudas com acesso rápido a cuidados. Agora enfrentamos a pressão de ter mais pessoas, com mais idade e com doenças mais complexas, numa estrutura que não responde cabalmente a estes desafios.
Doenças crónicas como a hipertensão arterial, a obesidade, a diabetes, a doença cardiovascular ou os cancros não se tratam em consultas de urgência, nem a promoção da saúde materno-infantil e ao longo da vida se faz pontualmente. Precisam de abrangência na avaliação, continuidade nos cuidados, acessibilidade nas intercorrências e multidisciplinaridade na orientação. Precisam de antecipação e precisam de liderança. São necessidades diferentes das que existiam há 40 anos quando se desenhou a estrutura do SNS e que obrigam a repensar o modelo.
As novas necessidades surgem nas atitudes face à prevenção que incluam de facto todos os setores, retirando pressão sobre os serviços de assistência. Encontramos mais saúde numa melhor educação, ambiente, qualidade urbana, segurança social, segurança pública, entre outros, o que não se consegue nos centros de saúde ou hospitais, mas pela conjugação de políticas que envolvam toda a sociedade. Menos doença implica acesso a programa de vacinação, rastreios e terapêuticas adequadas. O reforço e capacitação da rede de Cuidados de Saúde Primários é um investimento estratégico com retorno significativo a médio prazo. Menos carga de doença significa diagnosticar e tratar adequadamente as doenças existentes, permitindo a recuperação e o retorno a uma vida útil e com qualidade. E no cerne precisamos de uma organização integrada dos diferentes atores, simplificando o sistema e garantindo resposta efetiva às necessidades de saúde dos cidadãos independentemente do local onde se encontram.
Há muito a fazer em todos os objetivos: a promoção de estilos de vida saudáveis nas escolas e comunidades, a melhoria da literacia, a responsabilização face à saúde, a definição do papel dos municípios na promoção da saúde, o fortalecimento da rede assistencial na sua estrutura multiprofissional e na capacidade resolutiva, a criação do registo médico individual, a interoperabilidade capaz de permitir a comunicação efetiva entre níveis de cuidados, o acesso à inovação diagnóstica e terapêutica, a digitalização e automatização de processos, entre outros, e deixar de desperdiçar energia em discussões intermináveis de natureza muitas vezes corporativa.
O SNS precisa de todos e, sobretudo, de um entendimento comum guiado por uma liderança clara e orientado para a criação de valor. Precisamos de uma atitude positiva e proativa, onde cada contribuição seja valorizada, sem duplicações nem desperdícios, percebendo que as soluções de hoje são diferentes do passado porque hoje é o presente e não o passado. Construir saúde é uma emergência nacional que moldará o futuro das próximas gerações. Vamos construir saúde num SNS que una, sem preconceitos nem idealismos, mas com rigor, ciência e a experiência dos profissionais, respondendo às expectativas dos cidadãos, e promovendo um futuro melhor para todos.