O problema da alteração ao RJIGT para além da habitação

É preciso promovermos cidades compactas para uma sociedade mais sustentável e justa, tudo o que a alteração prevista ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) vem pôr em causa.

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Megafone P3 Tiago Bernardo Lopes
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Nos últimos dias, muito se tem escrito sobre a incapacidade da nova alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) poder combater a crise na habitação – uma ideia que subscrevo. Contudo, importa olhar não só ao que este diploma é incapaz de fazer, como aos danos que ele vai trazer. A alteração ao RJIGT, por permitir a decisão unilateral dos Municípios do alargamento dos perímetros urbanos e convidar às descontinuidades das estruturas urbanas, põe em causa um modelo de cidade para o qual Portugal ia caminhando: a cidade compacta.

No pós-ditadura e até aos anos 90, o desenvolvimento urbano em Portugal foi moldado quase exclusivamente por políticas isoladas que construíam cidade, mas não dialogavam umas com as outras. Neste tempo o que importava era infra-estruturar o território e, segundo o livro Cidade e Democracia (Coord. Prof. Álvaro Domingues), existia um grande défice de experiência, capital humano qualificado e recursos financeiros nos municípios para planear além das necessidades básicas das cidades.

Chegado aos anos 90 entendia-se o retrocesso da situação portuguesa. Tínhamos um território mal gerido, com uma dispersão de construção que punha em causa a sua eficiência e justiça. Outras cidades europeias tinham já implementado planos para conter o chamado urban sprawl, ou crescimento difuso de pouca densidade, que a utilização do automóvel veio permitir. É também nos anos 90 que a União Europeia publica o Green Paper do espaço urbano, em que se defende a cidade compacta como o modelo mais sustentável para o urbanismo. Nesta altura surgem ainda movimentos como o New Urbanism, que defendia a cidade compacta e de grande diversidade de usos para uma melhor qualidade de vida.

É nesta época que Portugal começa a seguir um caminho de maior coordenação no crescimento da cidade. Introduzem-se os Planos Municipais de Ordenamento do Território, onde se inclui o Plano Director Municipal. Estes planos criavam uma nova realidade nas cidades, comprometendo todos os agentes – públicos e privados – com uma linha mestre de orientação definida pelo Município em diálogo com outras entidades responsáveis pela gestão do território. Nada se construía na cidade que não estivesse subjacente a este “plano geral”. Ao longo dos anos foram feitas reformas nestas ferramentas no sentido da sua maior eficiência, como a eliminação de figuras do solo ambivalentes e uma clarificação de políticas. Portugal ia assim caminhando na direcção das cidades mais compactas. Ia atrasado, mas no bom caminho.

Durante os 2010’s, uma série de relatórios da UN-Habitat e policy papers mostravam como a cidade compacta tinha efeitos positivos na eficiência de recursos, na economia e na saúde pública. Portugal comprometia-se com o objectivo de promover cidades compactas e bem planeadas, subscrevendo a New Urban Agenda, em 2016, e a Nova Carta de Leipzig em 2020.

Também no contexto científico o modelo de cidade compacta aparece em destaque. São publicados vários artigos (e.g. Compact city planning and development: Emerging practices and strategies for achieving the goals of sustainability) onde se defende que a cidade compacta cria sustentabilidade ao reduzir a quantidade de viagens e encurtar o tempo de deslocação, ao diminuir a dependência do automóvel, ao reduzir as taxas per capita de utilização de energia, ao limitar o consumo de materiais de construção e de infra-estruturas, ao atenuar a poluição, ao manter a diversidade de escolha entre locais de trabalho, instalações de serviços e contactos sociais e ao limitar a perda de zonas verdes e naturais. Outros estudos colocam ainda na cidade compacta e diversa a chave de uma sociedade mais justa, resiliente e participativa.

Em súmula, as evidências e consenso em torno da cidade compacta não podiam ser mais evidentes. E ainda assim, optamos por sacrificar este valor ao primeiro chamamento de outra crise?

Reforço que mesmo o contributo deste diploma para a crise da habitação é, no mínimo, duvidoso e longe de estar provado, e que não tem colhido junto dos diferentes profissionais que trabalham ou estudam o território, como a Associação Portuguesa de Urbanistas, a Liga para a Protecção da Natureza ou a Ordem dos Arquitetos. A falta de debate público sobre esta medida e a sua rapidez e timing, aproveitando as férias natalícias, são, em si mesmo, um sinal de má saúde legislativa.

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