Atração pela destruição
Os perdedores estão numa expedição punitiva e sentem que passar a ter um Democracia de “d” pequeno é um castigo merecido.
Com a crise política na Alemanha, desencadeada pela rejeição da moção de confiança ao governo de coligação liderado pelo SPD (que já vale menos nas sondagens que o partido de extrema-direita AFD e que já recebeu o apoio de Elon Musk) e a contínua ingerência e incompetência de Macron na França, que parece tentado, por atos falhados e omissões, a colocar Marine Le Pen no Eliseu, o grande realinhamento político, vivido na última década nos EUA e onde, na verdade, a Itália de Meloni já habita, está cada vez mais próximo de se tornar realidade. A chegada de Trump à Casa Branca significa a passagem do Rubicão para muitos governos europeus. Em Portugal, por exemplo, já há algum tempo que se sente a aflição do PSD em acompanhar os novos tempos. Escolheu recentemente envolver a PSP e convidar a comunicação social para assistir a espetáculos circenses, numa demonstração de poder performativo pueril e degradante.
Contudo, enquanto a direita tradicional tenta travar o avanço da extrema-direita com teatro, devia olhar-se ao espelho e admitir a sua tremenda responsabilidade na precária situação do Ocidente, que resultou numa estrondosa rejeição das elites e do statu quo por aqueles que ganham a vida com os parcos rendimentos do seu trabalho. A política europeia mudou radicalmente depois do subprime e da crise das dívidas soberanas, de tão má memória para os portugueses. Uma crise que nenhum político ou economista conseguiu prever e que nenhum político ou economista conseguiu, na altura, resolver. Nesse momento os partidos do establishment e os seus especialistas perderam toda a credibilidade, e são agora considerados como parte de um regime especialistocrático, sem soluções, ou ainda pior, irremediavelmente corrupto. É por isso que, paradoxalmente, muitas das pessoas que votam nos partidos de extrema-direita sentem que estão a recuperar a democracia da ditadura dos sábios e académicos.
A oposição à imigração, o reforço da organização patriarcal, a rejeição à liberdade de género ou muitas outras liberdades e garantias que estão inscritas no, até agora, dominante liberalismo social, são a face mais visível da antítese dos partidos da nova direita. Mas são apenas o combustível que acicata o fogo da indignação contra as elites cosmopolitas. O anzol de recrutamento, esse tem origem no descontentamento que já há muito tempo habita o coração dos infelizes e dos perdedores do regime, orientado pelas derrotas do seu quotidiano. São os salários encolhidos, a ida humilhante ao supermercado, a casa miserável, a escola dos filhos sempre fechada ou sem professores, os transportes públicos a abarrotar e, se o azar bater à porta e tiverem algum problema de saúde urgente, os meses de espera por uma consulta ou cirurgia. Estas preocupações, os vencedores do sistema ou não as têm, ou não as sentem tanto na pele, porque têm os bolsos mais cheios e porque a vida lhes correu melhor, podendo usar o seu estatuto para se manterem à tona. Os perdedores, apercebendo-se disso, estão numa expedição punitiva e sentem que passar a ter um Democracia de “d” pequeno é um castigo merecido.
Recentemente tropecei, de forma casual, numa surpreendente frase: “Muitas pessoas têm atraído a sua própria destruição, física e mental, por negligenciarem a atenção a questões comuns”. A frase é, como é óbvio, hiperbólica. Mas a convicção com que se afirma é esclarecedora. Foi escrita há mais de um século, para uma das primeiras campanhas publicitárias ao papel higiénico, e pese embora a leviandade da sua origem, contém rara profundidade e poder de persuasão. A direita já demonstrou os detalhes em que se quer concentrar, estigmatizando imigrantes (não todos, como é óbvio) e arrecadando as medalhas do combate político e cultural contra a “esquerdalha”, seja com o 25 de Novembro seja com as aulas de educação para a cidadania, por exemplo. É uma tática que tem dado excelentes resultados eleitorais, mas que esconde uma enorme falta de ideias. É mais cortes de impostos e privatizações, medidas que há bem pouco foram catastróficas para o país e para a Europa. Cabe aos progressistas arranjar soluções para os problemas comuns.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico