Uma outra forma de luto
Tinha uma gravidez não evolutiva, um termo desconhecido para mim até aqui. Uma gestação que parou de evoluir às sete semanas e cinco dias. O facto de ser comum devia fazer sentir-me melhor?
1.
Em março de 2022 estava grávida. Depois de tantos vaticínios vindos de todos lados, da Medicina, à família, aos amigos e conhecidos, que me preveniam para a inevitabilidade de, aos trinta e nove anos, estar para lá do período fértil e inerentes vicissitudes, estava grávida. O teste da farmácia primeiro e a ginecologista depois confirmavam cinco semanas de um diagnóstico desejado.
Fui sozinha fazer a primeira ecografia.
Entrei no consultório. Despi-me e deitei-me na maca. A cortina que separava a médica da assistente fechou-se. O exame começava. No segundo seguinte, a cortina voltou a abrir-se, puxada repentinamente pela jovem assistente que olhou na minha direção, surpresa e assustada, como se quisesse confirmar quem era eu.
A médica não falava. Devem ter sido segundos, no máximo um minuto ou dois, mas pareceu-me uma eternidade, sobretudo depois do gesto denunciante da assistente – não se abre a cortina daquela maneira —, e o que estava no ecrã era uma linguagem desconhecida para mim.
— “Está tudo bem doutora?”, perguntei para quebrar aquele silêncio.
— “A senhora sente-se grávida?”, respondeu a médica.
— “O que é sentir-se grávida?”
Sem resposta, comecei a elaborar hipóteses e raciocínios, em voz alta: sentir-se grávida era igual a sentir enjoos fortes? Peito muito inchado? Desejos? Nenhum destes sintomas me atormentava os dias até então, pelo menos em doses consideráveis, mas não tinha ainda toda uma gravidez para ter sintomas? O que era suposto sentir uma mulher grávida? O que é que eu deveria saber, que não sabia?
Continuei sem resposta.
Como se nós, mulheres, nascêssemos programadas e com a obrigação de saber quando há vida ou deixa de haver dentro de nós. Como se nos pudéssemos substituir à Medicina.
A médica, pouco expressiva e indecifrável, mais ainda de máscara, com a calma sepulcral característica de quem repete os mesmos gestos vezes e vezes sem conta, por tantos dias e anos quanto os seus cabelos brancos, decifrou então o que estava a ver no ecrã, deixando transparecer desilusão. Tinha uma gravidez não evolutiva, um termo desconhecido para mim até aqui. Uma gestação que parou de evoluir às sete semanas e cinco dias. O coração do “bebé” não se ouvia.
O átrio da receção estava cheio de casais e eu estava sem o meu par. Recordo este momento com a sensação do sinal sonoro dos aparelhos que registam os sinais vitais quando estes falham, com a diferença de que eu estava consciente. Não me lembro da cara da administrativa da recepção, mas lembro-me da sua afabilidade para comigo. Ela seria a primeira de muitas mulheres, durante este período da minha vida, a dizer-me que o que eu estava a viver era muito comum, que já tinha passado pelo mesmo ou que conhecia alguém a quem tinha acontecido.
Por ser comum devia fazer sentir-me melhor? E porque é que nunca tinha ouvido falar disso?
Rapidamente ativei o sentido de sobrevivência e a racionalidade. Havia providências a tomar: localizar a minha ginecologista, avisar o pai, cancelar a viagem.
Não sabia o que sentir. E como era suposto sentir-me?
Precisava de silêncio.
O mesmo silêncio que hoje preciso para escrever e reviver este tempo. Um silêncio que tem de ser absoluto. Silêncio que só encontro quando todos dormem e os ouvidos latem num zunido sem fim.
2.
O dia seguinte foi longo. Ainda a digerir o dia anterior e com muitas interrogações sobre o que estava a acontecer, tentava localizar a minha ginecologista a todo o custo, ao mesmo tempo que dava conta de mais um dia de trabalho exigente. Sabia que podia ter uma hemorragia a qualquer momento, mas não sabia ao certo o que deveria fazer. Precisava de falar com a minha ginecologista com urgência.
Quase vinte e quatro horas após a ecografia consegui.
Muito comum de acontecer, este episódio não colocava em causa futuras tentativas. Nada tinha que ver com a minha idade ou possíveis problemas de saúde meus ou do meu namorado. O ideal seria que o meu corpo expelisse naturalmente esta gravidez, seria o melhor para a minha saúde. Devia dirigir-me a uma urgência. Foram as orientações que retive da conversa com a ginecologista que me deu a certeza do que era necessário fazer.
Quando o dia chegou ao fim, estava cansada e exausta. O Mário, meu companheiro de vida e ex-futuro pai, propôs-me que fossemos jantar fora e conhecer um restaurante novo que andava na sua mira. Aceitei, tendo a culpa por companhia no resto da noite. O que desfrutaria eu daquela refeição? Como é que era possível estar a preparar-me para ter um aborto – sim, era isso o que me esperava — e estar sentada no meio de um restaurante cheio de gente animada que, em véspera de feriado e de fim-de-semana prolongado se empenhou em sair à rua com o seu melhor traje para, de seguida, ir aproveitar a noite? Mas, se precisava de me alimentar e de me preparar para as próximas horas, porque não num restaurante e novo?
Cheguei a colocar em causa que o Mário sentisse o mesmo que eu, que estaria a fugir da realidade, como tantas vezes o vi fazer. Hoje sei e recordo esse momento como o seu enorme esforço para me fazer sentir melhor, perante uma situação que aos dois perturbava. Os dois estávamos tristes e confusos. Os dois precisávamos de comer e não tínhamos forças para fazer o jantar. Não me lembro do que comi, do que conversamos ao certo. Lembro-me dele a sorrir para mim, a orientar-me os passos e as escolhas, a amparar-me, a querer resgatar-me da incerteza, da minha ausência e do silêncio que aos poucos se ia apoderando de mim.
Por esta altura, depois de um dia pesado, a ânsia por resolver o assunto e não ter mais de relatá-lo, de pensar sobre e de viver com ele, crescia. Imaginava que estaria a escassos instantes da sua resolução.
Silêncio, eu só queria silêncio.
3.
Ainda nessa noite dirigimo-nos à maternidade, com a expectativa de que tudo terminaria aí. Expliquei a situação à entrada, novamente na triagem da urgência com mais detalhe, e voltei a ter de relatar os factos aos médicos. O que estas repetições custavam.
A equipa de médicos que me examinou disse que tinha de ir para casa e voltar depois do fim de semana à consulta de gravidez de risco.
— Noutras situações idênticas, tem-se revelado prematuro avançarmos com a interrupção da gravidez, justificaram.
Perguntei o que significava prematuro, se queria dizer que haveria uma hipótese do diagnóstico estar errado. Disseram-me que sim. Voltei a questionar se seria mesmo assim, pedi e voltei a pedir para que não me iludissem. Reafirmaram que sim. Fui para casa confusa, entre esperançosa e realista. Para a médica que fez a ecografia e para a minha ginecologista, que também viu o relatório, não havia dúvida. Para três jovens médicos naquela que é uma das principais referências nacionais em saúde materno-infantil tínhamos de esperar e voltar depois do fim de semana. Uma longa espera.
Passámos os três dias seguintes em casa. Pouco ou nada falámos sobre o tema. Enfiei a cabeça em trabalho. Voltei a agir como se estivesse grávida. Na segunda-feira, regresso à maternidade para a consulta de gravidez de risco. Explico tudo uma outra vez.
Para meu completo espanto não voltei a ser examinada e não o seria. Nem sequer voltei a falar com médicos. Não havia dúvidas quanto ao diagnóstico de gravidez não evolutiva, estava ali para seguir o protocolo. Caiu-me tudo. Desabei em lágrimas, pela primeira e última vez ao longo de todo este processo. Num corredor cheio de grávidas barrigudas, eu estava ali, sem barriga e novamente sozinha.
Pela primeira vez ficou claro, sem margem para dúvidas, o que poderia esperar dos próximos dias. Aguardar em casa que uma hemorragia acontecesse. Noutras palavras – minhas palavras —, aguardar em casa que um aborto espontâneo acontecesse. Ficaria de baixa no mínimo um mês, no máximo mês e meio. Nada ficaria resolvido tão fácil e rapidamente como desejava.
E mais, nem sequer tinha anunciado que estava grávida e agora tinha de anunciar que deixara de estar grávida. Pelo menos, no que eram as obrigações, assim teria de ser. No centro de saúde agilizar a baixa. No trabalho avisar que as férias se transformavam numa baixa e explicar porquê. Um périplo de inúmeros telefonemas a repetir a mesma história. Todas as vezes como a criança obrigada a comer a sopa.
Cumpri as obrigações. Amigos e família ficaram de fora desta notícia. Por nenhuma razão em particular, estava bem, simplesmente não me apetecia falar. Não queria falar. Relatei a duas amigas queridas, mas por escrito. Falar custava-me.
Silêncio, era melhor assim.
4.
Os quinze dias passaram. Nada aconteceu. Regressei à maternidade para me medicarem. Vim para casa e iniciei a medicação expulsiva, ou melhor, abortiva. Deitei-me, à espera dos efeitos para os quais tinha sido alertada. Uma espera silenciosa, na minha cama e no meu quarto, acompanhada de livros e jornais. O mundo dos outros seria um lugar bem melhor para estar. Fugi para lá. Terminei a biografia do Mandela – que homem magnífico —, a remeter os meus problemas para a insignificância, e entrei no universo de Joan Didion, com o Ano do Pensamento Mágico.
A hemorragia que esperava seria semelhante à menstruação, disseram-me.
O sangue que saía parecia lava, espesso e cremoso ao mesmo tempo. Como se um vulcão dentro de mim tivesse acordado. Um vulcão para o qual tinha de olhar para verificar a saída de um “género de saco”, sinal de sucesso de todo este processo. Desconheço a menstruação de todo o universo feminino, mas duvido que uma grande parte de nós produza estas quantidades de sangue mensalmente.
Tive dores. Ainda bem que podia estar em casa e na cama. Numa mudança de posição senti o que descrevo como a saída de um ovo de dentro de mim. Corri para a casa de banho. Tive a certeza de que era o tal saco, mas num formato bem diferente de um saco. Fez-me lembrar uns bolos que a minha mãe nos comprava quando éramos miúdos, os rins, com uma camada de creme branco a unir as duas partes do biscoito. Era esse o seu exato tamanho, a sua exata forma.
Uma futura placenta, cuja evolução fora interrompida, pensei. Ali deveria evoluir um bebé. Chamei o Mário, virou a cara. Já eu tive de ver, tive de tocar e tive vontade de esquadrinhar aquela matéria dura para ver o que tinha lá dentro. Será que veria um mini, mini, mini ser humano? E agora o que deveria fazer, que destino dar? Mandei para o lixo o meu futuro ex-filho/a, foi isso que fiz?
Percebi neste exato momento, como reconfirmei mais tarde e tive a certeza, que, por mais acompanhada que a mulher esteja, a gravidez é um assunto exclusivo das mulheres. É dentro do nosso corpo que tudo se passa para o bem e para o mal.
Voltei para a cama. Continuei a ler. Silêncio.
5.
A consulta de revisão foi numa quarta-feira e na segunda-feira seguinte regressei ao trabalho. Sabia que só regressando à rotina me iria forçar a sair do silêncio. Não valia a pena continuar em casa, de onde pouco tinha saído no último mês. Era necessário continuar. Precisava de me confrontar rapidamente com o quotidiano. Queria muito seguir em frente porque queria esquecer.
Só mais tarde, em terapia, entendi que precisava de fazer o luto. Outro luto. Um luto completamente novo para mim, mas um luto.
A morte sempre me acompanhou.
Tinha dez anos quando descobri que a minha avó paterna deixara de respirar, catorze quando a minha avó materna morreu, vinte e nove quando o meu pai morreu. Três pessoas, três mortes, três corpos. Todos estes lutos tinham em comum um corpo para chorar, pressupunham a existência prévia de uma pessoa. Como era possível estar de luto por algo que não chegou sequer a ser?
Seria assim para todas as outras mulheres que, tal como eu, viram a gravidez parar? Sabê-lo-iam? Sabê-lo-ão? Por algum motivo estas experiências acabam por não vir a público, permanecendo apenas na memória de quem as vive, de quem nem sempre sabendo identificar a dor e como lidar com ela, arruma o assunto num canto esquecido do seu ser, em silêncio.
Silêncios necessários para viver.
Silêncios que não deixam morrer o que morreu.
Silêncios que ponderamos quebrar se forem úteis.
Silêncios que desejávamos nunca ter ouvido.
Silêncios que quando interrompidos nem sempre nos fazem bem.
Idêntico à falta de empatia demonstrada por alguns profissionais de saúde nesta travessia. Enquanto uns garantiam que a gravidez não evolutiva nada tinha a ver com a minha idade, outros deixavam escapar “esperou até agora, quer o quê?”. O que sabem todos eles da vida dos pacientes que lhes aparecem em consultório?
De regresso à normalidade. Já não havia silêncio. Já não havia refúgio.
6.
Julho de 2022, voltei a engravidar.
Continuei sem saber responder à pergunta “sente-se grávida”. Também ninguém o voltou a questionar. Não tive enjoos, não tive desejos exóticos às quatro da manhã, o meu peito não inchou desmedidamente. Descobri que estava grávida porque o período menstrual não vinha e fiz um teste de gravidez.
A rapidez com que voltara a engravidar impressionou-me. Uma espécie de felicidade em pausa durante semanas até ter consulta, contida e prudente, instalou-se em mim, à espera de ter a certeza de poder ser felicidade.
Desta vez quis estar acompanhada em todos os atos médicos, desde o momento zero, desde a primeira ida à ginecologista. Experiente, sempre a tremer das pernas e a arfar, viu logo o que nos trazia ali. Sem perder muito tempo fez-me a ecografia que confirmou o resultado positivo do teste da farmácia. E mais – silêncio —, deu para ouvir o coração a bater. Sorrisos e lágrimas soltaram-se naquela pequena sala. Foi como se o meu bebé falasse comigo. Agora sim, podíamos viver esta alegria. Nem queria acreditar.
Estamos tanto tempo à espera que uma determinada coisa aconteça, passamos por tantos obstáculos, que quando essa coisa acontece parece mentira. Beliscamo-nos vezes e vezes sem conta, duvidamos e voltamos a duvidar. E só depois começamos a sonhar.
No meu boletim de grávida passou a constar a gestação que terminou às sete semanas e meia. Descobri que, por mais que eu quisesse esquecer este episódio da minha vida, estaria sempre a recordá-lo. Uma gravidez é uma gravidez e existirá para sempre. A cada nova consulta e atos médicos a mulher é sempre questionada pelas gravidezes que já teve, tenham elas culminado no nascimento de um bebé ou interrompidas, voluntaria ou involuntariamente. É uma constante esta pergunta. Impossível esquecer, só silenciar.
Em silêncio, no meu silêncio
Para sempre Catarina ou Tomás.