Bogotá, uma cidade surpreendente
“Quando chegamos ao centro histórico temos a sensação de entrar numa aldeia suspensa no tempo, feita de casas baixas, coloridas, alinhadas por ruas estreitas”, escreve a leitora Maria Goreti Catorze.
Eu tinha planeado fazer uma certa reportagem sobre Bogotá. Na vida, estamos sempre a fazer planos inúteis. De repente, poucas horas antes do voo para Cartagena de Índias, a máquina fotográfica desapareceu do bolso do meu casaco. Tinha lá dentro um cartão cheio de fotografias da cidade das quais não guardo qualquer cópia.
Aconteceu na Carrera 7, frente ao edifício Murillo Toro, o Ministério das Comunicações da Colômbia. Trata-se dum edifício compacto, de aparência cinzenta e paredes lisas com janelas quadradas. Há uma espécie de alto-relevo ao lado da porta principal. Em suma, uma construção típica da década de 1940. Está ali, como podia estar em Berlim, no bairro dos ministérios hitlerianos. Minutos antes, a segurança tinha-me alertado: aqui não se pode fotografar. Pensei com os meus botões: vão exigir-me a devolução da fotografia? Claro que não.
Voltemos à máquina: hipótese 1:) caiu acidentalmente, sendo logo apanhada por um larápio atento; hipótese 2): foi surripiada do bolso da gabardina desta europeia imprudente. No instante em que levo a mão ao bolso e não a encontro há um pequeno mundo que se desmorona. Tenho a obsessão do registo fotográfico desde que os bilhetes-postais desapareceram dos quiosques turísticos.
Refaço o percurso da Carrera 7 várias vezes mas não está em lado nenhum. Regresso ao hotel cabisbaixa, sem ânimo para continuar a visitar mais museus e igrejas. Atravesso a esquina da catedral na Plaza de Bolívar (ou Plaza Mayor), no cruzamento com a Casa del Florero (atual Museu da Independência). Subo a Calle 11 em direcção ao cruzamento da Carrera 5 e viro à direita. O hotel é ali, nas traseiras da Casa de la Moneda, que pega com o Museu Botero, que por sua vez pega com o Museu de Arte Miguel Urrutia. Do outro lado da Calle 11 está o Centro Cultural Gabriel Garcia Márquez e a biblioteca Luis Ángel Arango. Um pouco acima fica a Igreja da Candelária, um dos bairros mais típicos de Bogotá.
O hotel é um velho palácio colonial, situado numa das ruas centrais, estreita e sossegada. É um dos sítios mais silenciosos onde já pernoitei, o que me levou a aventar que poderia viver ali para sempre. Uso a aldraba para bater à porta, que será aberta pelo mordomo: primeiro espreita através do postigo e só depois corre o ferrolho comprido de ferro forjado. Nessa tarde demorou mais tempo a abrir do que seria razoável. Já conheço esse ritual levemente irritante. A lentidão dos latino-americanos exaspera-me. Eu digo "gracias", ao que ele responde com uma vénia imperceptível, visivelmente contrariado, "con gusto". Claro que o aborrece esta profissão de porteiro de turistas irrequietos e apressados.
Agora fala um pouco de espanhol mas no início respondia-me a tudo em inglês. Talvez sejam ordens da gerência, ansiosa de passar uma imagem internacional do seu hotel de charme. Entro como sempre para uma antecâmara que tem a imagem de Nossa Senhora à esquerda e dirijo-me ao pátio interior, cheio de vegetação tropical. A primeira vez que aqui entrei tive uma sensação de estranheza porque está frio nesta altura do ano. Bogotá fica a quase três mil metros de altitude, no planalto andino. No piso superior estão os quartos luxuosamente mobilados à época colonial. O meu tem uma antessala decorada com artefactos pré-colombianos e livros antigos com cheiro a mofo. As estatuetas de cerâmica criam uma atmosfera repousante de velho museu. Até os espelhos são originais, cheios de patine, com a superfície raspada do uso e da humidade.
Este é apenas um exemplar das centenas de casas coloniais que existem na cidade: muitas são museus, repartições públicas, hospedarias, residências ou universidades. Na verdade, Bogotá é uma cidade surpreendente. Quando chegamos ao centro histórico temos a sensação de entrar numa aldeia suspensa no tempo, feita de casas baixas, coloridas, alinhadas ao longo de ruas estreitas de traçado quadriculado e numeradas nos dois sentidos, horizontal e vertical. Essas ruas têm nomes mas toda a gente as conhece pelos números em que se cruzam as calles com as carreras. A distância entre elas é medida em quarteirões (as quadras).
Sento-me num sofá do rés-do-chão a folhear os livros de fotografias de Bogotá que comprei em duas magníficas livrarias da cidade. Não encontro à venda tecnologia mas as livrarias ainda têm o sortilégio do tempo em que os livros eram bens preciosos. Continuo desgostosa porque nada substitui as fotos que perdi. Outro dia falarei da impressão que me deixaram na memória. Ouço a aldraba da porta e precipito-me para abri-la. Sei que os meus amigos portugueses estão de volta. O mordomo segue-me, surpreendido com a minha pressa.
Maria Goreti Catorze (texto e fotos)