Brasil aboliu o horário de Verão, mas clima pode deitar o plano por terra

Secas intensas causadas pelas alterações climáticas podem pôr em causa decisão do Brasil de abolir a hora de Verão. Consumo de energia pode ser 2,9% menor e poupar dezenas de milhões de euros ao país.

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Com o sistema hidroeléctrico do país sob pressão da seca, reintroduzir ao horário de Verão poderia reduzir o consumo de energia no país Igor Do Vale / Getty
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Há mais de cinco anos os brasileiros vivem sob o tipo de tranquilidade temporal que muitas pessoas por todo o mundo cobiçam, sem mudanças de relógio, sem confusões de horários - foi banido por decreto presidencial o famigerado horário de Verão, uma parte do ano em que os relógios são adiantados para maximizar a luz do dia sazonal.

“Horário de Verão, nunca mais!”, afirmava em Abril de 2019 o ex-presidente Jair Bolsonaro. Só que a prática não se deixa derrotar tão facilmente.

Depois de várias emergências energéticas no Brasil, e com a perspectiva de mais emergências à medida que os efeitos das alterações climáticas se intensificam, o horário de Verão banido está, afinal, a parecer muito melhor do que parecia, em particular aos olhos de alguns membros do Governo.

No final do ano passado, em meio a uma seca histórica que ameaçou a geração de energia hidroelétrica e aumentou as contas de luz, as autoridades brasileiras quase decretaram o regresso ao horário de Verão, de forma a poupar energia. O Governo está a preparar as bases políticas para o restabelecer já este ano. “Quero destacar minha defesa do horário de Verão como política para o país”, afirmou em Outubro o ministro de Minas e Energia do Brasil, Alexandre Silveira.

Debate global

Por todo o mundo, cidadãos e governos têm debates recorrentes sobre o horário de Verão, chegando muitas vezes a conclusões contraditórias. Países como o Azerbaijão, o México e Samoa aboliram a hora de Verão. Já a Jordânia, a Namíbia e a Turquia seguiram a direcção oposta, optando pela hora de Verão permanente. Pelo meio, a Rússia tentou estabelecer a hora de Verão permanente, mas acabou por desistiu.

Na União Europeia, desde 2001 vigora a directiva 2000/84/EC, que obriga os Estados-membros a mudarem a hora legal duas vezes ao ano: a primeira no último domingo de Março e a segunda no último domingo de Outubro, defendendo que o horário de Verão permite “aproveitar a luz natural disponível num dado período de tempo”. No Verão de 2018, a Comissão Europeia também convidou os cidadãos europeus a pronunciar-se sobre o horário de Verão. A iniciativa da Comissão para acabar com as mudanças da hora chegou a ser aprovada pelo Parlamento Europeu, mas o assunto continua até hoje na gaveta do Conselho da UE, sem interesse dos países em retomar o assunto.

Na altura, o Observatório Astronómico de Lisboa (OAL) emitiu um parecer a recomendar a manutenção da hora de Verão e da hora de Inverno, avaliando factores como a poupança energética e a perturbação no sono. O parecer sustentava, contudo, que a transição para a hora de Inverno “poderia ser melhor” se fosse feita em finais de Setembro, como acontecia até 1995 na Europa, e não no fim de Outubro, “permitindo uma maior aproximação à hora solar durante o ano”.

Segundo o documento, manter apenas a hora de Inverno significava ter “o sol a nascer perto das 5h na altura do Verão, ou seja, uma madrugada de sol desaproveitada seguida de um final de tarde com menos uma hora de sol, factores que não são positivos nas actividades da população”. De acordo com o parecer, no entanto, a poupança de energia em Portugal “é positiva mas diminuta”.

Adaptação

Quando o Brasil eliminou o horário de Verão, em 2019, a vida - se não o tempo - continuou praticamente inalterada. Mas também ficou mais estranha. Na região sudeste, densamente povoada, o céu começa a clarear às 4h30 da manhã durante o Verão; às 8h, quase parece meio-dia. Nas praias do Rio de Janeiro, nunca é cedo demais para se preocupar com queimaduras solares.

Com o passar dos anos, um número cada vez maior de brasileiros começou a habituar-se. Alguns passaram mesmo a preferir a vida sem o horário de Verão, em particular quem percorre longas distâncias e já não se vê obrigado a sair de casa na escuridão total. Entretanto, as sondagens têm revelado que o horário de Verão acabou por perder o apoio da maioria.

“É óptimo para todos”, comemorou Bolsonaro no final de 2022. “A sociedade se adaptou ao fim do horário de Verão, que mexia com a maioria da população brasileira.” “A mudança chegou para valer”, prometeu o ex-presidente.

Não contavam com o clima

Os efeitos das alterações climáticas, contudo, podem dar cabo desse plano. O Brasil, o maior país da América Latina é líder mundial em energia limpa. De acordo com a Câmara de Comercialização de Energia Eléctrica do Brasil, 93% da sua electricidade provém de fontes renováveis, a maioria das quais hidroeléctricas.

Essa força, no entanto, também deixa o país vulnerável às alterações climáticas. Com o aquecimento global e as secas cada vez mais frequentes, as reservas de água do Brasil caíram para níveis precários, pondo em risco a sua principal fonte de energia.

Em 2021, uma seca prolongada esgotou as reservas de água do país, aumentando as contas de electricidade em cerca de 20%, de acordo com a Câmara Nacional de Energia Eléctrica. Depois veio a seca de 2024, a pior dos últimos 70 anos, e as autoridades governamentais começaram a olhar mais seriamente para a poupança de luz do dia.

O Operador Nacional do Sistema Eléctrico divulgou um relatório em Setembro a recomendar o regresso ao horário de Verão, afirmando que reduziria o consumo de energia em até 2,9% e pouparia até 356 milhões de reais (cerca de 55 milhões de euros) ao país apenas a contar com os meses de Outubro a Fevereiro. A mudança, avalia uma nota técnica da entidade, resultaria numa maior eficiência do sistema nos horários de maior consumo, em especial entre as 18h e as 20h, um período em que “o sistema precisa lidar com os desafios da saída da geração solar e do aumento da demanda por energia”.

Alexandre Silveira, o ministro da Energia, disse na altura que a decisão de eliminar o horário de Verão tinha sido uma extravagância que o Brasil não tinha condições de pagar. “Foi uma imensa irresponsabilidade sem nenhuma base científica”, disse o ministro da energia, recordando que perante a escassez hídrica em 2021 o país esteve “à beira do colapso energético”. Mas a decisão sobre uma eventual mudança acabou adiada.

Uma nova realidade

A decisão de acabar com o horário de Verão equivale a uma espécie de “aposta nacional sobre se vai chover”, acredita José Sidnei Colombo Martini, engenheiro eléctrico da Universidade de São Paulo, em declarações ao jornal norte-americano Washington Post.

E essa aposta deve tornar-se cada vez mais arriscada com o passar dos anos.

“O Brasil sempre teve uma quantidade enorme de água disponível em comparação com outros países, armazenando 12% da superfície do planeta, mas isso está a alterar-se”, afirma também Suely Araújo, coordenadora de políticas públicas do Observatório do Clima. As estimativas, descreve, mostram que “podemos ter uma redução de 40% na disponibilidade de água nas principais regiões hidrográficas do Brasil até 2040”.

“O Brasil entrou numa nova realidade”, afirma.

“Tudo pelo planeta”

Numa tarde ensolarada na praia de Ipanema, na orla do bairro histórico do Rio de Janeiro, as pessoas tentavam familiarizar-se com a nova realidade na qual as alterações climáticas se tornaram uma força tão grande que podem até ditar como o país acerta o seu relógio.

Ernnan Bita, 36 anos, veria com bons olhos o regresso do horário de Verão. Passou os últimos cinco anos a sentir falta daquele bocadinho extra de luz do sol ao fim do dia, a “sensação de que se podia fazer qualquer coisa” quando o trabalho estava a terminar. “Infelizmente não voltou este ano, mas espero que volte no ano que vem”.

Ao seu lado, Bruna Mendonça, 37 anos, abanava a cabeça. “Graças a Deus que não voltou”, disse ama, sem tirar os olhos da criança a seu cuidado. “Tenho de sair para o trabalho às 5 da manhã. Imagine sair e esperar na paragem de autocarro sem luz? O Brasil é perigoso”.

Claudinho Oliveira, um DJ de 50 anos que vende discos de vinil, foi mais circunspecto. Para si, a questão do horário de Verão é maior do que qualquer pessoa - trata-se do futuro do planeta. É preciso conservar toda a energia, se possível, e não lhe parece que seja assim tão difícil mudar o relógio duas vezes por ano. “Tudo o que pudermos fazer para ajudar o planeta é um grande feito”, disse.


Traduzido e adaptado por Aline Flor

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