Era de noite, o turno tinha terminado e arrumava o último gabinete, prestes a fechar a porta. Era um fim de dia igual a outros em missão: frio, ventoso, escuro. Todas as pessoas tinham sido atendidas. Era um esforço para a equipa, mas estávamos dedicadas a cuidar de quem nos chegava. O cansaço da noite colava-se aos gestos das horas em que o pensamento se desdobrava na medicina em português, inglês, árabe, persa. Parte da equipa já se tinha ido embora, restando eu, uma enfermeira que, naquele dia, era a chefe de equipa, e mais duas pessoas intérpretes. De costas para a porta, quase a apagar a luz, ouvi passos apressados nas escadas no hospital-contentor: emergência.
Era uma mulher grávida, exausta de uma jornada perigosa desde o Afeganistão, um país tomado pelos taliban, que relatava dores abdominais e contracções. Sem corredores humanitários, enfrentara uma caminhada violenta e cruel, para depois atravessar num barco de borracha o mar Mediterrâneo, que é a fronteira mais mortífera do mundo. Após examiná-la, e ouvir os batimentos cardíacos do bebé, que desaceleravam frequentemente, decidi referenciá-la para o hospital.
Porém, era recém-chegada ao campo de refugiados, e ainda não estava registada, nem havia quem lhe fizesse o registo àquela hora avançada da noite. Estava, por isso, ainda em situação irregular. Isto impediu que a minha decisão clínica, que tinha urgência em enviá-la para o hospital, fosse aceite, sendo suplantada por barreiras burocráticas que lhe negaram o acesso à saúde naquela noite. Para além da analgesia, de pouco lhe pude oferecer. Ficou entregue à sua sorte.
Cheguei a Portugal da minha quarta missão humanitária há cerca de três semanas, e este é um relato real. Estive a exercer num campo de refugiados na Europa, financiado por dinheiros europeus, onde todos nós, contribuintes, ajudamos na manutenção desta violação de direitos humanos, negando o pleno acesso a cuidados de saúde a quem precisa, e mais ainda a quem é irregular. Fazemos parte de uma Europa colectiva, alheados a uma realidade que acontece todos os dias às nossas portas, mas que deixou de ser notícia por já não suscitar interesse.
Após pouco tempo daquela história, e estando já em Portugal, deparei-me, profundamente perplexa e preocupada, com a aprovação do projecto de lei n.º 384/XVI/1ª, que visa alterar a Lei de Bases da Saúde e restringir o acesso ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) a pessoas estrangeiras não residentes ou em situação irregular. Saí de um lugar cercado de muros de arame farpado, cuja violência das histórias dos que chegam à procura de um refúgio na Europa é de uma brutalidade inimaginável, para chegar a Portugal e testemunhar, de forma idêntica, uma limitação no acesso aos cuidados de saúde das pessoas em situação irregular, apenas com base no seu estatuto administrativo ou de residência. Esta alteração viola a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito à saúde consagrado na Constituição da República Portuguesa, no seu Artigo 64.º.
O novo projecto de lei introduz uma discriminação inaceitável ao privar pessoas contribuintes, que aguardam a sua regularização devido a atrasos da AIMA, do acesso pleno ao SNS. Esta medida afecta desproporcionalmente migrantes vulneráveis, em particular, menores, pessoas grávidas e pessoas com multimorbilidades. Além disso, ignora evidências científicas e éticas, colocando em risco a saúde pública ao dificultar diagnósticos precoces e cuidados preventivos essenciais.
No coletivo HuBB – Humans Before Borders, rejeitámos desde o início esta exclusão e defendemos a universalidade do SNS como um pilar da justiça e da coesão social.
Também, assinei, e continua a encontrar-se disponível para subscrição por parte de todos os profissionais de saúde, uma carta aberta, apelando ao Presidente da República e às autoridades para que revoguem esta medida discriminatória. Com a entrada em 2025, existe o compromisso de intensificar o apelo à sociedade civil e ao Parlamento para que rejeitem este retrocesso.
Continuaremos a opor-nos a políticas que agravam desigualdades e violam princípios éticos, reafirmando que a saúde é um direito universal, não um privilégio condicionado ao estatuto migratório. O apelo para a rejeição desta alteração permanece firme. Reafirmamos o nosso compromisso com um SNS universal, inclusivo e fundamentado na dignidade e igualdade humanas.
Saúde é um direito, não um privilégio.