Um Brasil de mulheres: do tipo atrevida, do tipo acanhada, do tipo vivida

Três convidadas atrasaram-se para a ceia: Jeniffer Castro teve um impasse no avião, Eliane Marques precisou defender seu povo e Sandra Monteiro estava com uma faca ao pescoço em plena Av. Paulista.

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Há dias, uma história nebulosa sobre uma mulher que não cedeu o assento no avião a uma criança que queria sentar-se à janela foi tema quase absoluto de interacções online. A “mulher da janela do avião”, de nome Jeniffer Castro, filmada não pela mãe da tal criança, como acreditou-se inicialmente, foi alvo de uma terceira pessoa que buscava engajamento nas redes. Jeniffer saiu da polémica com mais de dois milhões de seguidores no Instagram e alguns contratos de publicidade.

Sem dizer uma única palavra, a mulher do tipo acanhada virou ícone de uma época a que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han chama de pós-narrativa: na qual fragmentos isolados, incompletos e inconclusivos de uma realidade muito mais complexa publicados em plataformas digitais ganham o estatuto de verdade.

Também na primeira metade de Dezembro, tivemos a escritora Eliane Marques, que, na noite em que receberia um Prémio da Academia Rio-Grandense pela qualidade de sua obra Louças de Família, foi aquela do tipo atrevida. Eliane teve de abdicar da celebração da sua conquista para denunciar um discurso racista proferido por Airton Ortiz, presidente da referida academia, e exigir retratação. Desta vez, as redes sociais serviram como megafone, levando ao conhecimento nacional a postura valente de Eliane Marques. Contudo, ela não saiu dessa com contratos e milhões de seguidores.

O presidente da academia chegou a emitir uma nota (publicada no site da instituição) na qual tentou retratar-se pelo tom racista. Na noite em que homenagearia uma mulher negra, Ortiz optou por enaltecer supostos feitos de migrantes europeus no estado do Rio Grande do Sul, apresentando-os como um contraponto ao que descreveu como o atraso das regiões historicamente marcadas pela predominância escrava. Sob a luz do pensamento da escritora Conceição Evaristo, penso que ou Eliane Marques soltava as mãos que com ela escreveram seu premiado livro, ou denunciava o racismo daqueles que esperavam que ela não abdicasse de sua festa para interromper o sono da casa grande.

Não sendo suficiente, tivemos ainda o tragicómico caso de Sandra Monteiro — a do tipo vivida. Feita refém numa parada de autocarro na Avenida Paulista, com uma faca no pescoço, Sandra parecia já ter vivido tanto que sua expressão facial naquele momento (registado por inúmeros ângulos para satisfazer uma sociedade hiperconectada e ávida por vídeos curtos de episódios insólitos) era de completa indiferença. Ela chegou a dizer em entrevista: “Tanta coisa para fazer e eu aqui”.

Sandra foi vítima de outra mulher que, em 2018, já havia praticado o mesmo acto e sido considerada inimputável por perícia técnica. Numa busca rápida pelos termos “mulher paulista refém faca” no Google, parte das notícias tratam de como Sandra “viralizou na web”.

Por fim, não posso deixar de mencionar a música que dá título a esta crónica: Mulheres, famosa na voz de Martinho da Vila. A composição, de autoria de Toninho Geraes e lançada em 1995, tornou-se um dos tópicos mais comentados destas últimas semanas do ano, devido às alegadas semelhanças com a canção Million Years Ago, de Adele. Esta, lançada em 2015 no álbum 25. A questão virou objecto de apreciação judicial e a música da britânica chegou a ser suspensa das plataformas pela justiça brasileira. Não demorou para que fãs da cantora lamentassem que por conta disso uma apresentação dela no Brasil fosse ainda mais dificultada. Outros comentadores ironizaram a "auto-estima dos brasileiros". E, claro, não faltaram as clássicas tentativas de equivalência: se no Brasil também há quem plagie, por qual motivo isso é uma questão?

Eu juro, caro leitor, que poderia tentar estar mais longe da Internet este ano ou passar ao largo dessas discussões. Mas isso não resolveria o problema, só me traria alguma paz individual. São as atitudes dessas três mulheres, cada uma com sua relevância, que dão o tom das despedidas e reflexões necessárias sobre um ano cuja palavra que lhe representa segundo a Oxford é brain rot (apodrecimento do cérebro, em tradução livre).

A quem tem feito discursos numa academia de letras ou em caixas de comentários na Internet, recomendo para 2025 um maior comprometimento com a escuta, com a leitura e com a compreensão do que está acontecendo ao seu redor — e (eventualmente) sendo transmitido de forma editada, descontextualizada e acelerada na tela mais próxima.

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