Morreu o britânico David Lodge, cuja escrita ria de um mundo negro

O autor completaria 90 anos no final deste mês. Destacou-se pela trilogia de livros, escritos entre 1975 e 1988, em que satirizava aspectos da vida no mundo académico.

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David Lodge fotografado em 2016 Daniel Rocha
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O escritor e crítico literário britânico David Lodge, figura marcante da literatura contemporânea, morreu na quarta-feira aos 89 anos, acompanhado pela família. A informação foi confirmada esta sexta-feira pela editora Vintage, ligada ao grupo Penguin Random House.

David Lodge escreveu mais de 20 romances e obras de não-ficção, tendo também assinado guiões televisivos e peças de teatro. Destacou-se pela sua Trilogia Universitária, composta pelos romances A Troca: Uma História de Duas Universidades (1975), O Mundo é Pequeno (1984) e Um Almoço Nunca é de Graça (1988). Os dois últimos valer-lhe-iam nomeações ao Prémio Booker.

“A sua contribuição para a cultura literária foi imensa, quer através das suas críticas, quer através dos seus romances magistrais e icónicos, que já se tornaram clássicos”, afirmou, em comunicado, Liz Foley, directora editorial da Harvill Secker, uma chancela da Vintage.

David Lodge nasceu em Dulwich, no sul de Londres, e cresceu em Brockley, também na capital inglesa. Publicou o seu primeiro romance em 1960, ano em que começou a dar aulas na Universidade de Birmingham (seria professor de literatura até 1987), mas apenas ascenderia a um patamar de maior visibilidade 15 anos mais tarde, com A Troca, que na versão original tem o título Changing Places.

Editada em Portugal pela Asa, a obra tem como personagens principais dois académicos, um inglês e o outro americano, que trocam temporariamente de instituição, ao abrigo de um programa de intercâmbio anual de docentes que as suas universidades mantêm.​ Uma comédia, realça as diferenças entre os círculos académicos do Reino Unido e dos Estados Unidos.

Dos três títulos que compõem aquela que ficaria conhecida como a “Trilogia Universitária”, A Troca é o “mais formalmente experimental”, considerou em 2011, no The Guardian, a autora e crítica de artes performativas Natasha Tripney, fazendo referência a partes do livro que simulam a escrita para teatro, ou a uma secção da obra em particular que é composta integralmente por recortes de jornais.

Mais tarde, em 1980, David Lodge recebeu o prémio Livro do Ano Whitbread. Valeu-lhe a distinção a obra How Far Can You Go?, sobre jovens católicos e a sua posição face às políticas do Vaticano em matéria de contracepção, resume a BBC. Em Portugal foi ​editada pela Gradiva ​com o título Até Onde Se Pode Ir?, em 1997.

Em 2016, numa entrevista ao PÚBLICO, o autor apontava esta obra como exemplo da importância da comédia no seu trabalho. “[A veia cómica] sempre cá esteve, mas foi ao conhecer um outro escritor, Malcolm Bradbury, que foi dar aulas para a Universidade de Birmingham e de quem me tornei amigo e colaborador, que a desenvolvi. Ele encorajou-me muito. Escrevemos juntos uma revista satírica e gostei muito dessa experiência, e descobri que tinha um certo talento para aquilo, que podia fazer rir o público. Quando decidi escrever sobre o problema dos católicos e do controlo da natalidade, pensei: ‘Não escrevas sobre isso de uma forma séria, vai ser horrível de ler.’”

Em 1984, com O Mundo é Pequeno, a literatura de Lodge regressou ao universo académico, bem como aos protagonistas de A Troca. Um Almoço Nunca é de Graça encerraria a “Trilogia Universitária” quatro anos mais tarde. Em 1989, o próprio autor adaptou este último título ao pequeno ecrã; a minissérie, dividida em quatro partes e exibida pela BBC, foi filmada na Universidade de Birmingham. O Mundo é Pequeno também teve direito a uma adaptação televisiva, em 1988, mas quem escreveu esse argumento foi Howard Schuman.

Ambos os livros conseguiram nomeações ao Booker, mas nenhum venceu o prémio. Em 2018, o The Times classificava Lodge como “provavelmente o autor mais ilustre da sua geraçãoque nunca logrou vencer um dos maiores galardões da literatura inglesa. Em entrevista concedida a esse jornal, o escritor não se mostrava particularmente incomodado, afirmando que o prémio é “bom para o romance”, mas “mau para o romancista”.

David Lodge escreveu três peças de teatro, uma das quais, intitulada The Writing Game, viria também a ser adaptada pelo próprio para televisão. Agraciado em 1997 pelo Governo francês com a Ordem das Artes e das Letras, e feito Comandante da Ordem do Império Britânico no ano seguinte, publicou em 2015 a sua autobiografia, Quite a Good Time To Be Born (“Nascido Em Boa Altura”, numa tradução livre).

Na altura da entrevista ao PÚBLICO, o jornalista Carlos Vaz Marques sublinhava o aparente optimismo do título — um atributo talvez algo improvável, dado que, para o entrevistador, o optimismo não parecia ser a principal característica do autor. “Não é”, confirmava Lodge. “Não vejo nenhuma razão para se ser optimista. Embora a humanidade tenha demonstrado, desde sempre, um certo engenho perante as dificuldades. Mas será possível resolver o problema das alterações climáticas? Será possível disciplinar esta caótica multidão de milhares de milhões de pessoas de modo a levá-las a agir no sentido do interesse comum? Parece-me muito improvável. Há hoje muita coisa que, ao longo deste século, a nível planetário, pode vir a correr mal: as alterações climáticas, epidemias de muitos tipos, guerras religiosas, desastres nucleares e mais umas quantas de que não me consigo lembrar de imediato. Estamos num comboio rápido, cada vez a maior velocidade, e que a qualquer momento pode descarrilar. Não é por acaso que os romances distópicos, romances pessimistas quanto ao futuro, são hoje bastante populares.”

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