Um Pouco Mais de Azul: a palavra da semana é operação

O que fazem um jornalista, um economista e uma poeta, neste episódio do podcast Um Pouco mais de Azul?

A palavra mote do episódio é a palavra operação. Rita Taborda Duarte fala sobre os imigrantes encostados contra a parede na Rua do Benformoso a partir de um poema de Zbigniew Herbert; Francisco Louçã faz um balanço dos conflitos do ano, Gaza, Trump, e fala sobre as transformações na vida pública e o racismo; e Fernando Alves vai discutir óperas onde entram polícias e da operação na rua que em tempos se chamou do Boy Formoso.


O podcast Um Pouco Mais de Azul é um podcast independente da rede PÚBLICO. Está disponível às quintas-feiras, quinzenalmente, em todas as aplicações para escuta de podcasts — como a Apple Podcasts ou o Spotify —​ e na área de podcasts do site do PÚBLICO.

Em baixo, pode ler três excertos do episódio desta semana.


Uma operação que nos envergonha

Fernando Alves

- Onde é a ópera, São? No São Carlos?

- Não. É na rua do Benformoso.

- Será Monteverdi? Talvez um madrigal…

- Não é Monteverdi. É Montenegro. E não é uma ópera. É uma operação.

- Uma operação, São? Quer dizer que não há cantores? Não há um coro?

- Não, não há um coro. Há um corpo. Um corpo policial. Diante de outros corpos, encontrados a esmo, lá na rua do Benformoso.

- Será tudo isso em perseguição de algum fugitivo, como na Tosca, de Puccini? Chefiado por alguém tão cruel como aquele Scarpia que perseguiu Angelotti, o anarquista escapado do castelo de Sant’Angelo, em Roma? Sabes que esse Scarpia foi vítima de facadas desferidas pela cantora lírica, amante de um pintor que acolhera o fugitivo?

- Não, São. Não há Puccini, nesta operação. E se houver facas, talvez sejam de uns tipos que não faziam parte do coro.

- Dos escravos hebreus?

- Não. Dos imigrantes do Bangladesh.

- Não há libreto? Nem bailado? Nesse caso, sobre o que recai a acção, do que trata a operação? O que a motiva?

- É uma acção sobre a percepção, um novo tipo de interpretação da realidade.

- Mas, tanto quanto percepciono, há nisso algo de operático. Será para tal efeito talhada a rua do Benformoso, com os seus restaurantes de comida asiática? Agora me lembro que existe, na rua do Benformoso, um restaurante chamado “Clandestino”. Será isso?

- Nem sei que te diga. Também há barbearias. E agora me lembro: no Barbeiro de Sevilha entram polícias. Pelo menos um sargento e um soldado (que era na verdade um conde disfarçado)

- Que coincidência! É curioso que o nome completo da ópera é O Barbeiro de Sevilha, Alma Viva ou a Inútil Precaução. Tu mesmo disseste, se bem escutei, que esta seria uma acção sobre a precaução…

- Sobre a percepção, São…

- Ou isso…

- Já agora fica sabendo que o nome Benformoso, a crer em Norberto Araújo, terá evoluído de uma anterior designação “Rua do Boy Formoso” que substituíra a designação mais antiga de Rua Direita da Mouraria.

- Mas regressando ao guião da operação, estamos face a uma espécie de ópera bufa.

- De algum modo.

- Sabemos quem são os figurões. Mas os figurantes, os do Benformoso, os que todos os dias dão alma ao lugar, ao palco da operação, que papel lhes caberá?

- Serão simplesmente intimados a encostar-se à parede, de mãos erguidas ao alto, acima das cabeças. Ou seja: abaixo, muito abaixo, do que a dignidade de um ser humano reclama.

- Que raio de libreto, que raio de operação, demasiado cirúrgica, não obstante ser tão vago o critério da suspeição ou da percepção…ou lá o que é…

- Passado o ensaio que deixou muita gente indignada e estupefacta, um desses figurantes intimados a um papel para o qual não concorreram perguntou a um repórter do PÚBLICO: “Porque é que nos encostam à parede?”. Um outro admitiu que “a polícia faz bem em mostrar-se na rua e em perguntar pelos papéis. Não precisa é de encostar as pessoas à parede”.

- É um libreto que nos envergonha e nos diminui…

- De tal modo que um agente da Unidade Especial da PSP disse ao PÚBLICO: “O Chega conseguiu impor a sua agenda. Uma coisa é a percepção de segurança, outra é a verdadeira segurança”.

Assim dou por terminado este diálogo imaginário sobre uma operação cujo aparato inusitado nos envia para um registo cruel de ópera bufa com um libreto que desrespeita a dignidade do ser humano. Há operações que encostam à parede qualquer pessoa de bem.

Espero que a próxima incursão operática de Montenegro leve em linha de conta o lembrete de José Pacheco Pereira num artigo em que considera os acontecimentos da rua do Benformoso “uma mancha de vergonha”. Nesse artigo, o historiador acusa os que nunca mais permitem a construção de uma mesquita no Martim Moniz de “atirarem os muçulmanos para mesquitas ilegais em apartamentos onde grassa o fundamentalismo ou que os obrigam a orar na rua, para ainda acentuar mais o medo da ignorância”.

Não é operação que o mobilize, senhor primeiro-ministro?


Entre a shotgun e a parede, um poema de Zbigniew Herbert

Rita Taborda Duarte

Quando me ouvirem, o ano antigo terá acabado e o novo começará já a des(a)pontar. Seria útil, como um átimo de esperança, neste início de 2025, que nos tivessem sobejado, como na Grécia antiga, duas palavras diferentes, para designar o tempo; e que o tempo fosse um pouco mais do que a corrida apressada de encontro a uma parede, construída da distância entre nós e os outros. Bom seria, repito, que tivéssemos, como os gregos duas palavras para o tempo: cronos para o tempo cronológico, tempo humano que nos passa cíclico, marcando um compasso circular. E depois o outro tempo, de maior e mais profunda sabedoria: Kairos, a iminência do momento oportuno, o tempo certo, que se não se detém, nos detém a nós mesmos, num fósforo de saber consciente, instante único em que conseguimos, senão agarrá-lo pela cauda do cometa, pelo menos pressenti-lo, gozar um pouco da sua luz, torná-lo hesitante, interrogativo, antes da sua progressão, tecendo uma diferença feliz; o instante-breve em que a sorte bafeja.

Estamos todos reduzidos ao fardo do kronos, em que os novos tempos depressa se tornam velhos, caducados. Como diz Wislawa Szymborska, contemporânea do poeta de que falarei hoje, Zbigniew Herbert, quando pronunciamos a palavra futuro, a primeira sílaba está já no passado. Mas isto, digo eu, também porque às vezes o futuro se vê no espelho envelhecido do passado e é lá que encontra eco.

A palavra que escolhemos para o podcast de hoje, inaugurando o ano, é daquelas que admitem toda a tralha lá por dentro. Operação é a palavra: eufemismo, de luvas calçadas, infiltrando-se na linguagem e no pensamento. Na rua do Benformoso, em Lisboa, se consequência houve da dita operação – especial – terá sido sobretudo simbólica: a literalização absurda, aos olhos de todos, de um dito popular; a concretização fiel, dramatizada, de uma metáfora, uma gravíssima alegoria representada neste Natal: o acto de colocar imigrantes não entre a espada – mas, literalmente, entre as shotguns da polícia – e a parede. Na época natalícia dos presépios vivos enchendo o olho de caridades, foi este o espectáculo de triste comédia humana, que o governo quis oferecer ao país, embrulhado em cinismo, e soprando, como um ponto fanhoso, as deixas da extrema-direita. Um exercício de poder; e ao mesmo tempo, por meio de uma manipulação hipócrita, criar uma sensação de privilégio rasteiro, mesmo entre os cidadãos mais exauridos, deslassando as descosidas relações sociais, em que vive o país: criar o privilégio entre aqueles que, apesar de tudo, se sabem a salvo de serem entalados, sem mais nem porquê, entre a arma e a parede, em plena luz do dia, pela polícia. Transformar o direito mais básico de cidadania em desacorçoado privilégio é das maiores vergonhas democráticas em que se pode afundar um país.

Adorno declara em 1949 o impossível que seria escrever poesia depois de Auschwitz, como uma absoluta contradição dos termos. Depois de Auschwitz. Ou depois de Gaza. Depois deste mundo que cavalga desenfreadamente o Kronos, de um lado a espada, de outro a parede.

Saiu por estes dias, no meio editorial português, uma pequenina luz bruxuleante, que não aquece, é certo, nem ilumina: uma presença só; ressalva brilhando, perante a descrença face ao ano que aí vem, aos tempos que aí vêm; foi editado um dos mais belos livros ultimamente traduzidos em Portugal: uma amostra de poemas dos nove livros de poesia do poeta polaco Zbigniew Herbert, sob o título Poesia Quase Toda, com uma introdução de Coetzee e tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz. Pedindo desculpa pelo meu pessimismo, tão avesso às alvoradas de um novo ano, deixo-vos com um poema de Zbiniew Herbert, que suportou a ocupação nazi, também a perseguição estalinista; deixo-vos este poema neste inaugurar de ano, como uma operação um acto, uma acção, com vista a um efeito: o da consciência de que há-de haver sempre alguém a tentar encostar a justiça e a rectidão contra a parede. O poema que vos deixo chama-se "Os ornamentistas". E sempre saberemos, neste início do ano, que os corpos – todos eles – dos que se vêem entre a espada e a parede sempre lá estarão, mesmo que tentem pintar por cima, enquanto não se derrubar todas as paredes.

Zbigniew Herber, Poesia Quase Toda, Lisboa, Cavalo de Ferro, 2024 (trad. de Teresa Fernandes Swiatkiewicz)


Três mudanças sem retorno

Francisco Louçã

Não vale a pena olhar para trás. A saudade do tempo que passou é sempre uma construção mitológica e autocontemplativa: nem chegámos aqui trazidos por uma felicidade que se esvaiu, nem havia uma magia que organizava o nosso mundo e que se esgotou. O novo normal nasceu do que já havia e todas as suas características estavam inscritas no que agora no parece uma era de placidez, se comparada com a turbulência presente.

Já lá estava a guerra infinita e o “novo século americano”. Uma e outro eram os enunciados dos neoconservadores que chegaram ao poder com o segundo Bush e que desencadearam a ocupação do Afeganistão e depois do Iraque. O facto de esses neoconservadores estarem agora na oposição a Trump, horrorizados com as suas facécias, em nada desvaloriza a continuidade entre as visões do império. Conquistar o Panamá e a Gronelândia, ou colonizar o Canadá, são simplesmente formas bufónicas de exprimir essa mesma ideia da hegemonia mundial, que deve ser levada a sério seja pelas tarifas, seja pela escalada das ameaças, seja pelo aumento exponencial dos gastos militares para engordar o complexo industrial militar. Guerra infinita, é uma mudança sem retorno.

Esse modo de governar assenta na garra do medo. A guerra publicitada à exaustão, a imagem de uma turma de crianças morta em cada dia em Gaza, as pessoas a esvaírem-se em sangue e lágrimas, nada disso é uma mera expressão da verdade televisionada – é uma exibição do argumento do medo. Já se passou a barreira da contenção comunicacional; agora funciona, bem pelo contrário, a intoxicação pela repetição da mortandade. É por isso, e só por isso, que governos europeus podem tranquilamente proibir o direito de manifestação pró-palestiniana ou restringir liberdades de expressão, ou armar Netanyahu e o seu gang. De facto, a designação do inimigo interno passou a ser explicitável como condicionamento da democracia, o que só era sugerido até há pouco. A amputação dos direitos universais é o segundo caminho sem retorno.

Há ainda outra mudança em curso e creio que é a que tem maiores consequências, entre elas a de assegurar que as duas anteriores se tornam o novo normal. É a deslocação de sectores importantes da burguesia para o financiamento e a instrumentalização miliciana da extrema-direita. O compromisso do bufão-mor, Elon Musk, com Trump e agora com a AfD, demonstra a rapidez e a profundidade desta mudança. Sillicon Valley inclina-se para o neofascismo e poderia dizer-se que é coerente: afinal, trata-se de empresas com dominação mundial – como nunca aconteceu na história do capitalismo – e cujo mercado é o consumo das pessoas por si próprias, o que exige um sistema autoritário de condicionamento que Orwell e Huxley não podiam ter imaginado. Portanto, os mandarins da comunicação precisam de governos subordinados que blindem o seu poder. E essa é outra mudança sem retorno.

Guerra infinita, governo pelo medo e comunicação totalizante ao serviço de uma burguesia que acarinha a extrema-direita, é o que temos. E nem chega a ser paradoxal que a burguesia possa voltar aos tempos em que foi mais feliz e nós não. Por isso, não nos serve algum passado redentor, alguma bandeira velha ou algum dispositivo de combate social com os formatos anteriores. A luta pela paz não será equiparável à dos anos 1980, a da democracia não será como a das sufragistas, a dos movimentos populares não repetirá a de 1917, 1936, 1945 ou 1968. É um caminho com escassa bússola. Ainda bem que o podemos compreender no ano novo de 2025.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários