Ed Conway: “Não podemos fingir que um telemóvel aparece misteriosamente do nada”
O jornalista britânico acredita que “a nossa compreensão de como as coisas chegam até nós é primitiva”. No livro Mundo Material, Ed Conway fala sobre a origem dos materiais que permeiam a nossa vida.
Todos os dias usamos objectos sem darmos grande pensamento à sua existência: telemóveis, computadores, electrodomésticos, fármacos… A fórmula parece fácil: adquirimos estes bens e damos-lhes uso. Mais difícil seria dizermos de onde vêm os materiais usados na sua produção ou como são fabricados. São muitos, intricados e complexos processos. E há materiais cuja ausência tornaria difícil manter o nosso estilo de vida actual, incluindo aqueles que sustentam as nossas casas ou que nos fornecem o combustível para viajar.
O jornalista Ed Conway, editor de economia da Sky News, lançou recentemente um livro chamado Mundo Material (editora Temas e Debates) que traz para as luzes da ribalta estes materiais esquecidos. Seleccionou seis: o petróleo, o lítio, o sal, o cobre, o ferro e a areia. E, “numa história de deslumbramento”, faz uma viagem desde o momento em que estes materiais são extraídos das profundezas – e não só – até ao momento em que chegam às nossas mãos.
“O facto de haver montanhas que estão a ser destruídas no outro lado do planeta é de somenos importância no mundo etéreo”, neste mundo em que os objectos nos chegam a baixo custo e sem nos apercebemos da sua origem ou modo de fabrico. Apesar dessa ideia de que vivemos num mundo de desmaterialização crescente, diz-nos Ed Conway no livro, “o mundo físico continua a ser o sustentáculo de tudo”.
E “é terrivelmente irónico que a prossecução dos nossos objectivos ambientais vá exigir, a curto e a médio prazo, uma quantidade de materiais ainda mais considerável” para construir automóveis eléctricos, turbinas eólicas e painéis solares para substituir os combustíveis fósseis. “A consequência, nas décadas vindouras, será uma extracção ainda mais intensa de metais da superfície da Terra.”
As intenções (e a necessidade) de reduzir a zero as emissões líquidas de carbono são um grande desafio. “Eliminar as emissões de carbono significa ter de reimaginar a Revolução Industrial”, escreve no livro. Será preciso repensar quase todos os processos. E nunca uma transição aconteceu de forma tão rápida, diz-nos, numa entrevista feita por videochamada.
Porque considera ser tão importante saber de onde vêm os materiais e como são conseguidos?
Acho que há algo inato nos humanos que remonta à Idade da Pedra. Enquanto espécie, sempre escavámos coisas do chão e transformámo-las em ferramentas. E usámos essas ferramentas para melhorar as nossas vidas. Na Idade da Pedra, era preciso tirar pedras do chão e transformá-las em machados. E agora estamos a retirar pedras do solo e a transformá-las em semicondutores. Mas a relação fundamental que temos com o planeta continua a ser mais ou menos a mesma.
E penso que há algo de primordial no ser humano no que toca a termos uma vaga compreensão da relação com as ferramentas e de onde elas vêm. E perdemos isso. Parte do objectivo do livro é tentar recriar esta ligação. Quando comecei a investigar estas coisas, olhei para o mundo e pensei: “Agora tenho um pouco mais de noção de onde é que isto veio, provavelmente não de forma definitiva, mas compreendo um pouco melhor.” Era algo importante para mim.
E no relato das viagens aos locais de extracção é possível imaginar como as coisas são antes de estarem nas nossas mãos, de vislumbrar tudo o que percorrem até chegarem até nós...
A minha maior esperança é que outras pessoas se sintam assim quando o estão a ler.
Escolheu seis materiais: cobre, sal, ferro, areia, petróleo, lítio.
Inicialmente eram para ser sete. Ia incluir a madeira. Fiz muita pesquisa sobre o assunto e fiz viagens a várias florestas.
E qual a razão para não a incluir?
Apenas por ser um livro longo, não há espaço suficiente – mas teria gostado.
Considera que estes são os seis materiais sem os quais não conseguiríamos viver?
Sim, é um ponto de partida e uma estrutura para pensar sobre o resto dos materiais também. Continuamos a precisar de madeira. O carvão não é um dos seis materiais, mas aparece muitas vezes. E depois temos o azoto e o amoníaco, os fertilizantes, que aparecem bastante.
E também dedica bastante espaço a escrever sobre o sal e a areia, que parecem ser elementos óbvios no nosso dia-a-dia. Mas no livro aprofunda a nossa relação com eles e mostra que são muito mais do que isso. Também sentiu isso quando estava a escrever?
Sim... O sal foi provavelmente o mais controverso. Quando estava a começar, perguntei a algumas pessoas quais eram os materiais que consideravam mais importantes. Isto, porque não há uma lista definitiva. Eu trabalho muito com dados; portanto, se houvesse uma folha de cálculo que dissesse de forma clara “é a areia, é este ou aquele”... Mas não há: há algumas folhas de cálculo, sim, sobre a quantidade de material que retiramos do solo. E, de facto, a areia está mesmo no topo da lista, principalmente porque é um material de construção. Não é por causa do vidro e dos chips de silício [semicondutores].
Mas, sim, falei com muitas pessoas e o sal causou muita estranheza. Muita gente pensa apenas em comida, mas é a base de tantos produtos químicos, que, por sua vez, são a base de como fazemos vidro, o papel, de como fazemos até os produtos químicos de lítio que entram nas baterias, que ainda precisam de reagir com produtos químicos à base de sal para os transformar no material que depois entra na bateria. Quanto mais pensava no sal, mais achava que, de certa forma, era o mais fascinante, porque é tão omnipresente. Toda a gente tem sal nas suas vidas, mas ninguém passa muito tempo a pensar em como é fundamental para tudo o que se faz e para tudo em que se toca. Por isso, adorei o sal em particular.
E também é um material barato, não ajuda a entendê-lo como algo essencial.
Sim, mas também está relacionado com o facto de não deixarmos de usar as coisas. Aqui no Reino Unido, continuamos a extrair mais sal do que nos tempos vitorianos. Hoje em dia, continuamos a obter mais do solo do que alguma fizemos. Mas muito disso é invisível, porque não vai apenas para a comida ou para o saleiro, está a ser utilizado em produtos químicos e farmacêuticos.
Nesse mundo etéreo de que fala no livro, pensamos sobretudo em serviços e aplicações e nos dispositivos que temos. Perdemos a noção do que está a acontecer no mundo real? O facto de as montanhas estarem a ser destruídas para que possamos manter o nosso estilo de vida actual...
Fomos incentivados a não pensar nessas coisas. E, de certa forma, essa é uma história de sucesso – porque a globalização está tão desenvolvida neste momento e os preços foram reduzidos para um nível tão baixo que podemos encomendar qualquer coisa, qualquer aparelho, e ele pode aparecer no dia seguinte à nossa porta. Não temos de pensar nisso. Mas o problema é que, como subcontratámos e deslocalizámos grande parte destes processos para outros países, principalmente para a China, e a economia mundial é agora tão complexa e especializada, temos empresas que se especializam numa ínfima parte de todo o processo. Por esse motivo, existe uma verdadeira desconexão entre qualquer pessoa e o conhecimento do que é realmente preciso para criar um produto.
Há tantas pessoas envolvidas em cada um destes processos que ninguém sabe realmente como algo é feito. E há algo de muito poderoso nisso. Não é fantástico criar algo? Fazer um lápis. É um processo tão complexo que ninguém sabe sozinho como o fazer. O reverso da medalha é que a nossa compreensão de como as coisas chegam até nós é realmente primitiva.
A economia convencional não é muito boa a ilustrar isso, a mapear as cadeias de abastecimento. Estamos num momento em que, por todo o tipo de razões — e a transição é só uma parte disto, é também a globalização —, isto é muito mais importante do que alguma vez foi. Precisamos de um conjunto completamente novo de estatísticas e instrumentos para tentar compreender a natureza da economia global, que estatísticas como o PIB não conseguem fazer. A maioria das pessoas compreende que, quando compram algo, esse algo vem de algum lado. E que houve vários processos para o fazer, mas não falamos o suficiente sobre que processos são esses. E não é impossível.
Quando comecei a escrever o livro, sabia que queria contar esta história para um chip de silício. E a maior parte das pessoas com quem falei disse: “Porque é que farias isso? É demasiado complicado.” E é verdade, existem tantos pontos nesta cadeia de abastecimento. O meu relato é muito simplificado, apesar de ser bastante longo e complexo. Há muita coisa que deixei de fora. Deveríamos mesmo estar a tentar compreender estas coisas. E, no domínio da economia, não há ninguém que o queira tentar. Dizem apenas que é demasiado complicado, que deixem o mercado entregue a si próprio. Penso que todos beneficiaríamos de entender melhor estas coisas.
E, quando diz que se trata de uma história de sucesso não pensarmos nessas coisas, está a referir-se à forma como beneficiamos de todos estes objectos e serviços?
Sim, no sentido em que podemos obter coisas tão baratas. O nosso nível de vida é cada vez melhor. A maioria de nós já não trabalha em trabalhos de manufactura e essa indústria transformadora até pode ser um pouco perigosa, razão que faz com que muitas pessoas não trabalhem na indústria mineira.
Portanto, há uma história de sucesso em já não termos de fazer isso. Mas é isso que nos mantém vivos. Não é que essas coisas já não tenham importância. Olhamos para estatísticas como o PIB e é como se não importasse: como no caso da agricultura, é uma parte muito pequena, mas se ela acabar toda a gente morre, porque já não se consegue comer. Toda a gente se queixa do PIB no mundo da economia. O que acho frustrante é o seguinte: o PIB não é muito bom a mostrar-nos o que é realmente importante e o que nos mantém vivos. E, paradoxalmente, as coisas que mais importam em termos da nossa capacidade para sobreviver como uma espécie — mas também como uma civilização, as infra-estruturas que nos rodeiam, a água, o aquecimento, os materiais básicos, até o betão, que é capaz de manter a cidade em pé e as casas sólidas — representa uma fracção muito pequena do PIB. E coisas como as redes sociais são enormes. E isso, para mim, é uma imagem distorcida. Não é uma imagem representativa justa do que realmente importa em termos da nossa sobrevivência. E essa é uma das razões pelas quais é importante conhecer a origem destes materiais.
O mundo está a ter de mudar a forma como obtém energia e se desloca por causa da crise climática. Diz que uma transição energética nunca foi feita num período tão curto como agora. Quais são, na sua opinião, os principais desafios desta rápida mudança?
É um desafio gigantesco. No final do livro, sou optimista e pessimista em simultâneo. Provavelmente deveríamos ser um pouco de ambos, porque há tecnologias fantásticas que estão a ser desenvolvidas e coisas interessantes que estão a acontecer: com os preços da energia solar, por exemplo. Mas, ao mesmo tempo, a escala do desafio é enorme.
A maior parte das pessoas não compreende a escala do que será necessário para chegar à neutralidade carbónica na maioria das nossas economias. E penso que, em muitos países, os políticos comprometeram-se com estes objectivos sem compreenderem bem o que significam.
E quando se entende o que é necessário para obter os produtos de que todos dependemos todos os dias... há muitos processos industriais que, neste momento, não temos qualquer ideia de como descarbonizar. Estamos muito perto de 2050. Por isso, estamos a ficar sem tempo para o conseguir [descarbonizar e criar novos modelos].
A razão pela qual esta transição em particular é tão difícil é que, na maior parte das transições anteriores, fomos capazes de beneficiar dos combustíveis que se tornaram mais densos [mais aproveitamento através de menor quantidade]. Assim, da madeira para o carvão, do carvão para o petróleo, do petróleo para o gás e depois para o nuclear. De cada vez, houve uma espécie de benefício termodinâmico em termos de mudança de um combustível para outro.
Desta vez, a densidade energética das baterias é efectivamente inferior. Por isso, o trabalho que tem de ser feito para produzir a mesma quantidade aumenta. Há um desafio inerente. Mas há outra razão, que foi a razão pela qual me tornei um pouco mais pessimista no último ano: quando passamos por estas transições, na maioria das vezes, não é como se deixássemos de usar o último combustível que estávamos a usar antes. Ainda usamos muita madeira: continuamos a queimar muita madeira em todo o mundo.
O mesmo com os combustíveis fósseis, é provável que continue a haver algum uso…
Sim. Toda a gente conhece esta lógica de que temos de deixar o carvão, temos de ser menos dependentes dele. Ainda não aconteceu. E todos os anos a Agência Internacional de Energia [AIE] diz: “Estamos prestes a atingir o pico, o carvão está prestes a atingir o pico.” E depois não acontece. E, no ano seguinte, diz que se está quase a atingir o pico — e não acontece. E tenho a certeza de que, um destes anos, terão razão. Mas isso sugere que é muito difícil conseguir que nos libertemos destes combustíveis, em parte porque o carvão continua a ser muito barato e muito fácil para muitos países. Eu sei que a energia solar é, em certos aspectos, mais barata, mas em termos de fiabilidade da potência e de baixo custo… O carvão continua a ser muito eficaz, sobretudo para as economias em desenvolvimento.
Este é o aspecto fundamental: preocupa-me que não tenhamos experiência anterior de deixar de utilizar um determinado combustível. Tanto quanto sei, continuamos a usar basicamente todos os combustíveis que aprendemos a utilizar. Não parámos. Passar para a neutralidade carbónica é dizer que vamos deixar de utilizar alguns destes combustíveis por completo. E isso não tem precedentes. Nunca o conseguimos na existência humana.
Portanto, não é que o material desapareça. E isso é interessante, não é? Porque para atingir a neutralidade carbónica em todas estas vias alternativas que todos estão a traçar, a AIE e o nosso comité para as alterações climáticas e todos os outros, todos eles partem do princípio de que o carvão se reduz a um número muito baixo. Isso é totalmente sem precedentes. Nunca o conseguimos fazer no passado. Por isso, pergunto-me se as pessoas se apercebem do quão difícil isso será.
Sobretudo os decisores políticos...
Penso que há muitos solavancos no caminho que se avizinha: em parte é a política, mas também penso que esta conversa não foi devidamente tida com a maioria das pessoas.
E parte dessa conversa é dizer que, a curto prazo, isto pode ficar mais caro. De facto, será provavelmente mais caro. Talvez a longo prazo possa ficar mais barato, mas a curto prazo é preciso gastar muito dinheiro para investir em energias renováveis, em redes eléctricas, em baterias e em todas as tecnologias. Trata-se de uma infra-estrutura maciça, que envolve muito dinheiro a curto prazo. E acho que não foi devidamente transmitida a ideia do que vai custar chegar a esta meta.
No meu país e em algumas partes da Europa, já se começa a assistir a alguma reacção negativa das pessoas que dizem: “Não sei se estou preparado para isto.”
Podem mostrar-se contra porque, a curto prazo, nas suas vidas e a meio de uma crise, fica complicado gerir o aumento dos preços…
É como os veículos eléctricos. Eu tenho um carro eléctrico, tenho-o há muitos anos e adoro-o, mas continua a ser caro. Ainda não estamos nesse ponto.
E nem sempre é assim tão prático...
Sim, e ainda não chegámos a um ponto em que seja uma melhoria óbvia para muitas pessoas. Se quisermos que isto funcione, temos de inspirar as pessoas e dar-lhes a sensação de que a sua vida está a melhorar, e não que têm de ser penalizadas. Isto pode ser mais caro a curto prazo, mas há uma vida melhor no futuro – se o conseguirmos alcançar. Mas acho que não é assim que a conversa tem sido feita.
É viável mudar para veículos eléctricos, tendo em conta a procura existente e a quantidade de lítio que será necessária?
Não creio que o lítio seja o problema dos carros eléctricos. Penso que conseguimos obter lítio suficiente. Teoricamente, deveríamos ser capazes de ter baterias suficientes. O relatório World Energy Outlook das agências internacionais de energia diz que o actual pipeline que existe para o fabrico de baterias é suficiente para cumprir o seu roteiro para todos os automóveis eléctricos de que precisamos.
O problema é que quase todas essas baterias estão a ser fabricadas na China. E a questão passa a ser: a América sente-se confortável com isso? A Europa sente-se confortável com isso? A China está muito mais à frente no que diz respeito à produção de baterias e ao fabrico de módulos solares. Em teoria, isso deveria ser suficiente para nos ajudar a chegar à neutralidade carbónica, mas na prática muitos países, incluindo os nossos, estão preocupados com a possibilidade de dependerem de um único país para esse efeito. E a América, em particular, depende nervosamente dele. Já foram impostas tarifas aos veículos eléctricos chineses.
Eu não sou jornalista ambiental, sou mais um jornalista político, económico. Por isso, talvez esteja mais concentrado nestas coisas. Mas, para mim, as duas coisas são parte da mesma história. Não se pode escapar à política aqui. Em teoria, temos o tipo de engenharia, temos a economia e o tipo de capacidade de fabrico [necessários] e parece que estamos a fazer um bom trabalho nesse sentido. Mas depois há a política e está tudo a colidir neste momento. É uma história absolutamente fascinante, mas também bastante assustadora, porque, quando a política está envolvida, tudo se torna bastante imprevisível, não é?
O lítio pode ser um ponto de viragem não só na indústria dos transportes, mas também no mapa geopolítico mundial? Mais do que o material em si, importa muito o local onde é produzido. Poderá isto continuar a ser um problema?
Existem consequências geopolíticas enormes. Se pensarmos, muitas das questões geopolíticas que dominaram o século XX estavam, de uma forma ou de outra, relacionadas com o petróleo. Os aliados ganharam a Segunda Guerra Mundial, porque tinham mais petróleo. Toda a instabilidade no Médio Oriente é por esta ser uma área dominada por petróleo e gás. Por isso, seria estranho se estivéssemos a mudar do petróleo e do gás para metais como o lítio e o cobalto e isso não dominasse o quadro político do século XXI. É também um problema para o Médio Oriente, porque se deixarem de poder contar com grandes receitas provenientes do seu sector do petróleo e do gás... isso é existencial para eles. E já se vê isso na Arábia Saudita, a forma como estão a tentar afastar-se do sistema e a construir alternativas.
Para mim, o que é interessante aqui é: a China é, de certa forma, a história nas sombras de todo este livro. Porque a China já pensa neste mundo material há muito tempo. Grande parte das baterias, painéis solares e outros produtos são fabricados na China. Grande parte da razão pela qual a China está tão empenhada na transição energética não se deve ao facto de acreditarem piamente nas alterações climáticas e na redução das emissões de carbono — é porque querem independência energética.
E se passarmos de uma situação em que a maior parte da nossa energia é importada do Médio Oriente (para ser transformada em gasolina para os nossos carros), de repente, podemos ter um mundo em que somos nós próprios a fabricar as baterias. Obviamente, é necessário importar o lítio, mas as baterias são fabricadas por nós próprios e podemos alimentá-las com carvão e energias renováveis, que é o tipo de modelo chinês. Assim, todos os carros funcionam a carvão e a energias renováveis. Isso é um problema gigantesco para o Médio Oriente, porque essa era uma enorme fonte de recursos e de receitas no passado.
Isto está a mudar a dinâmica geopolítica de uma forma que é muito difícil de prever. Por outro lado, quando o petróleo foi descoberto na Arábia Saudita, não se tratava, de forma alguma, de uma economia desenvolvida. Era um país pequeno. Não tinha instituições políticas que existem em sítios como o Chile, por exemplo. Por isso, o facto de muitos dos recursos necessários para a transição energética se encontrarem em países muito mais desenvolvidos e com instituições políticas muito melhores é encorajador, porque é menos provável que haja instabilidade e é menos provável que haja um futuro volátil. A excepção, claro, são locais como a República Democrática do Congo, que obviamente continua a ser muito importante para o cobalto.
Sabemos que, no passado, o que muitas vezes aparentava ser uma solução, como o petróleo ou o plástico, acabou por se tornar um problema. Poderá acontecer o mesmo nesta fase de transição? Ou estaremos mais conscientes do perigo?
É provável que volte a acontecer. De todas as vezes que tivemos uma tecnologia transformadora acabou por ser um tiro pela culatra. Aconteceu com o petróleo, com os plásticos, com o carvão... Foi em parte graças ao carvão que não acabámos com todas as florestas que temos, porque o carvão foi capaz de intervir e fornecer todo o combustível de que necessitávamos para fabricar aço e para o calor de que precisávamos. O problema é que é muito difícil prever estas coisas com antecedência.
Suponho que a vantagem que temos agora seja o facto de estarmos a pensar mais nestas coisas do que as gerações anteriores. No passado, algumas pessoas pensavam sobre as consequências ambientais, mas nunca foi tão generalizado e tão sincero e com tantos milhões de pessoas a trabalhar para ter um planeta mais sustentável. Com sorte, vamos fazê-lo de uma forma mais inteligente, mas ficarei espantado se não houver algumas consequências indesejadas das tecnologias sobre que nos estamos a debruçar.
Para chegar à neutralidade carbónica, para alcançar tudo a que nos propusemos, temos de continuar a fazer muita extracção mineira, temos de fazer muita construção e de utilizar muita energia e, na maior parte das vezes, isso é bastante sujo ambientalmente. Por isso, para sermos limpos, temos de ser sujos. Suspeito que só daqui a uns 100 anos é que nos vamos aperceber de que houve consequências não intencionais de fazer todas as coisas que estamos a fazer agora.
A propósito das baterias, será que podemos sonhar com baterias de lítio que sejam completamente recicláveis? No livro diz que, mesmo que se recicle 95% do lítio, isso não seria suficiente para uma economia verdadeiramente circular.
É uma das leis da termodinâmica: perde-se sempre alguma coisa pelo caminho, tanto em termos de energia como em termos de matérias-primas. Mas penso que não é impossível e que é muito cedo no ciclo económico do lítio. Só agora é que a primeira geração de carros em grande escala começa a ser realmente reciclada. Por isso só agora é que começamos a saber quais serão as taxas de reciclagem.
O meu entendimento é que é possível retirar uma grande quantidade de lítio das baterias, mas é um processo complicado. E o mais engraçado é que há uma certa dinâmica: falamos com pessoas neste mundo da reciclagem e há coisas que nos parecem básicas. Uma das coisas mais difíceis para eles é: quando se tem uma bateria velha e é preciso desmontá-la de forma segura, como é que se remove a cola? Porque há cola por dentro e a maior parte desta primeira geração de baterias não foi feita a pensar na reciclagem. O que é interessante para mim é este equilíbrio de, por um lado, querer torná-las melhor para reciclar — o que significa torná-las mais fácil de desmantelar —, e isso está muitas vezes em conflito directo com a outra prioridade que é ser segura, para não explodir. Então muitas vezes junta-se retardador de chamas e um adesivo à volta. Tudo isto faz com que se torne uma bateria mais segura e mais robusta para a pessoa que está a conduzir o carro. Mas, ao mesmo tempo, torna-a mais difícil de desmontar. Estamos no início deste ciclo diferente, em que a reciclagem se torna bastante sexy.
Com a reciclagem, processos básicos como desmontar um carro tornam-se incrivelmente importantes. A única indústria que é, de longe, a melhor em termos de reciclagem é a do aço. E ninguém pensa no aço como sendo esta economia circular fantástica. Tem taxas de reciclagem mais elevadas do que qualquer outra. Não pensamos muito agora na forma como essa reciclagem vai ser feita. Quando se está a extrair algo, extrai-se e rebenta-se, rebenta-se com pedras do chão...
E teremos sempre de extrair materiais do solo?
Teremos sempre de o fazer. Em parte, porque nenhum processo de reciclagem é 100% eficiente e é sempre necessário algum material virgem. E, por outro lado, porque o mundo está a desenvolver-se e nós temos muito aço que podemos reciclar nos nossos países, na Europa, mas na África subsariana e em muitas partes da Ásia e da América do Sul ainda não têm nem de perto nem de longe tanto aço como nós. E, como digo no livro, olhar para o aço per capita é realmente uma forma poderosa de compreendermos o que temos e o nosso nível de vida.
Para os outros países atingirem qualquer coisa como metade do nosso nível de vida em termos da quantidade de aço que temos — os carros, os hospitais, tudo o resto —, precisam de tirar muito ferro do chão e fazer muito aço. Por isso, esse é um problema para todos estes modelos, porque não creio que estes modelos tenham realmente tido em conta o facto de que, se estes países se quiserem desenvolver como devem, e ter uma melhor esperança de vida e melhores padrões de vida, então precisam de produzir mais aço do que alguma vez produzimos, durante toda a história da humanidade. Ainda não existe uma forma de o fazer em grande escala, com baixo teor de carbono e a um preço acessível. É difícil.
Já não estamos habituados à ideia de explorar minas como estávamos antigamente. Esquecemo-nos de que praticamente todos os produtos que utilizamos começaram a sua vida ao ser retirados do solo. Mas como sai do solo noutro lugar do mundo, e porque muito poucos de nós trabalham nesse mundo material de que falo, como muito poucos de nós têm uma ligação íntima com ele, esquecemo-nos de que é assim que as coisas são feitas. E é verdade que tem de ser menos intensivo em carbono, mas não podemos fingir que um telemóvel ou qualquer outro dispositivo aparece misteriosamente do nada. Tem de ser feito em algum lado.