Eles são mestres dos sabores e saberes de Portugal

Ao longo do ano, conversámos e aprendemos com muitos mestres de Portugal. Dos cozidos ao peixe, do receituário tradicional à recuperação de artes, eis verdadeiros guardiães dos sabores portugueses.

Foto
Alcina Ruela Lopes, 92 anos, continua a preparar as enguias com as suas próprias mãos Nelson Garrido
Ouça este artigo
00:00
07:56

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Ai a raça do porco, ai a comida do animal, ai a lenha, ai o tempo de fumo, ai o respeito pelas receitas, ai a geada nas couves, ai as batatas Kennebec, a abóbora e o nabo. Ai isto, aquilo e aqueloutro. Os ais nunca mais acabam, mas, apesar de cada item ter o seu papel (com destaque para alimentação dos animais), é preciso registar desde já um primeiro mandamento: a qualidade de um cozido à portuguesa depende sempre — mas sempre — da alma de quem o prepara.

E a alma de Idalina Garcia Gomes (Lina para os amigos) tem a extensão da paisagem que se avista da torre mais alta do castelo de Montalegre em todas as direcções. Alma com sabedoria, com história, com respeito pelas tradições, mas aberta ao que vem de fora e, acima de tudo, uma alma que rejubila com aqueles que se sentam à sua mesa: filhos, noras, netos e os amigos destes. No projecto turístico Casa da Avô Chiquinha, em Montalegre, a mesa que Lina prepara é uma festa, é um palco e uma homenagem à arte do cozido.

Foto
Idalina Garcia Gomes (Lina para os amigos) Nelson Garrido

Natural de Setúbal e com queda para a cozinha —​ “A preparação dos berbigões tem de ser feita em tachos largos para que não haja acumulação e a abertura dos bivalves seja uniforme, muita atenção a isso” —​, António é daqueles homens do mar que estuda os assuntos.

Apesar de ser crítico da gestão da ligação da lagoa de Albufeira com o mar e do processo de eutrofização em curso, Tony — assim é conhecido pelos amigos — explica-nos que “a qualidade do berbigão desta lagoa deve-se à riqueza de micro e macroalgas e ao equilíbrio entre a salinidade e a água doce de desagua aqui, que fornece matéria orgânica importante para a alimentação dos bivalves”. “Já apanhei aqui berbigão com 50 gramas.”

Foto
António Oliveira durante a apanha de berbigão na Lagoa de Albufeira, Sesimbra Rui Gaudêncio

É o que defende João Paulo Lopes, presidente da APARA – Associação de Pesca Artesanal da Região de Aveiro, servindo-se do exemplo da amêijoa-boa.

“Têm outro sabor e até o tamanho é diferente”, vinca, sem esquecer o berbigão, o lingueirão, o mexilhão e a ostra de “qualidade ímpar”. “Grande parte dos bivalves que chegam a Espanha vai daqui da nossa ria”, atesta. Nesta reportagem não fartam mariscadores tradicionais a certificar as qualidades.

Foto
Anna Costa

Quando Pedro Vivo começou a vender carne maturada – em 2010 – aconteceram duas coisas: uma, o pai, que toda a vida trabalhou no negócio da carne fresca, achou que o filho tinha enlouquecido por se dedicar à “carne pobre”; duas, um coro de gente ligada à restauração começou a dizer que era proibido maturar carne em Portugal.

No país que já servia carne maturada estrangeira ninguém tinha lido qualquer documento oficial sobre a matéria, mas, pronto, o boato alastrou. Ainda nos recordamos, em 2013, de ligar às entidades oficiais para os devidos esclarecimentos públicos. Estas, pacientemente, explicaram-nos o óbvio: maturar carne não era nem podia ser proibido.

Foto
Pedro Vivo no seu talho Rui Gaudêncio

Sobre o Maranho da Sertã (produto com Indicação Geográfica Protegida) sabíamos quatro coisas: que são saborosos e inusitados; que são feitos com carne de cabra, arroz e hortelã; que se podem comprar crus ou já cozidos e, finalmente, que não existe uma tese consensual para a origem de um produto que, pelos ingredientes, temperos e sabor, nos remete para o mundo árabe.

O que desconhecíamos é que, tecnicamente, o maranho não é um enchido — é um ensacado — e que o responsável pela sua popularização foi Carlos Marçal, empresário do sector da restauração, hotelaria e eventos na Sertã e arredores.

Foto
Carlos Marçal Nelson Garrido

À primeira vista parece uma casa de habitação igual a tantas outras. Fachada revestida a azulejo e cinco janelas e uma porta virada para a rua. Ao centro, num discreto e pequeno quadro de azulejos brancos, é feita a devida apresentação: “Casa Alcina”. Lá dentro, há “pedaços” da ria por todos os lados, com destaque para as partes de uma proa e da ré de um moliceiro afixadas atrás do balcão. A ementa não engana: esta é uma casa que faz do peixe nobre da ria de Aveiro, a enguia, a sua grande especialidade. Fritas ou em caldeirada.

E melhor ainda: preparadas por alguém que conta já com mais de 70 de experiência a amanhar e cozinhar este peixe esguio. Naquela casa plantada no Cais da Béstida, na Murtosa, Alcina Ruela Lopes, continua a levar à mesa o peixe amanhado e preparado pelas suas próprias mãos. “Gosto muito disto”, garante-nos, com o sorriso estampado no rosto.

Foto
Alcina Ruela Lopes Nelson Garrido

Percebe-se o orgulho daqueles que em Castelo de Neiva teimam na grande pesca. Não só como guardiões da tradição, mas também contrariando a história e o destino, como é o caso de Manuel Fernando Silva, cuja vida próspera e bem-sucedida tem já garantia de continuidade com a companhia do filho. É o senhor do robalo, com fama ao longo de toda a costa acima do Douro. Pela quantidade, mas sobretudo pela qualidade das suas pescarias. “E sabe porquê? Porque eu só pesco qualidade, que é a pesca de anzol. O peixe chega vivinho, não fica batido”, apressa-se a explicar. “O peixe que anda na rede a sangrar fica… esganado, sufocado. No anzol mantém-se vivinho, não tem nada a ver, são coisas diferentes”, vinca, para justificar a fama que o envolve.

Foto
adriano miranda

Como quase todos, Bino, é assim que todos os tratam, já não vai ao mar. Mas depende do mar, vive do mar e tem o salitre entranhado. Agora, o das carapaças dos crustáceos e dos mais delicados mariscos de que é um dos grandes guardiões na nossa costa. Lagostas, lagostins, lavagantes, percebes, ouriços, camarões, sapateiras ou navalheiras que fornece às carradas para todo o lado. “O ouriço vai quase todo para Espanha, são eles depois que vendem para Itália. Quem compra aqui são os da Galiza, que também vêm cá buscar muito percebe quando por lá escasseia”, explica o poveiro, que abastece restaurantes, bares e peixarias, sobretudo na região Norte. É, por isso, conhecido como o rei dos mariscos, mas poveiro como é não aprecia a designação. “Põe aí antes lobo, o lobo da Póvoa. Ou antes, dos mariscos.

É constante o corrupio de turistas, fascinados pela monumentalidade da fachada barroca do palácio, a biblioteca, o mobiliário dos salões interiores recheados de história e arte, mas é depois pelos jardins, parque e horta biológica que acabam por se deter de forma mais demorada. Com quase 30 hectares, o espaço é uma imponente reserva de biodiversidade às portas de Vila Real, e a sua importância, papel e missão são a outra face da actividade da Fundação da Casa de Mateus.

Foto
Aos 13 anos já “andava ao mar” ADRIANO MIRANDA

“A nossa missão passa pela preservação de um legado do qual as plantas e a natureza fazem parte. Temos vinha, floresta, bosques, horta e os jardins históricos, uma realidade parecida com a do museu que temos que conservar e restaurar”, expõe Teresa Albuquerque, directora-delegada da fundação e ciosa guardiã da biodiversidade e saúde dos solos.

Sérgio Ribeiro, o herdeiro das carnes Jacinto, que se servem em grandes restaurantes internacionais As carnes da família Jacinto são mais valorizadas nas grandes steak houses do mundo do que cá dentro. Carnívoro que se preze deve ir a Esposende ver como se matura carne.

Foto
Teresa Albuquerque na horta biológica da Fundação Casa de Mateus Nelson Garrido

Ao longo dos anos provámos com agrado diferentes cortes das Carnes Jacinto, mas nunca tínhamos metido os pés ao caminho para ver o trabalho de várias gerações da família Jacinto com carnes maturadas. Resolvemos o problema há dias e ficámos aliviados, mas com uma certa angústia, para não dizer vergonha: é que escrever sobre alimentação há décadas e nunca ter visitado a unidade fabril da Lusocarne — onde são preparadas as carnes Jacinto —​ é a mesma coisa que escrever sobre vinhos e não conhecer a Quinta da Leda, onde se faz o Barca Velha.

Foto
Sérgio Ribeiro Paulo Pimenta
Sugerir correcção
Comentar