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O pão nosso de cada dia
Quem define a hierarquia entre os bichos que merecem comer de graça?
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Um dos programas favoritos do meu filho, em Lisboa, é visitar o Jardim da Parada, no Campo de Ourique, para oferecer pão aos patos. Qualquer criança no mundo assume essa missão com alegria. Ela estende o braço, com o pedacinho de pão entre os dedos. O pato se aproxima, estica o pescoço para abocanhar o alimento. Se o bico esbarra nos dedos da criança, ela se exalta num risinho. Assim como ri, por dentro, a criança adormecida no adulto que assiste à cena.
No último domingo, chegamos ao jardim após o almoço. Os patos andavam preguiçosos. Parte deles se espremia numa sesta coletiva, ao pé da casinha de madeira onde dormem. Inconformado com a indiferença dos bichos, meu filho os chamava. Tentava atrair os marrecos, com suas cores brilhantes, irresistíveis à curiosidade infantil. Eles afundavam a cabeça entre as penas e flutuavam, em silêncio, na superfície do lago. De olhos fechados para os visitantes, boiavam sobre a água salpicada de migalhas que as crianças atiravam para agradá-los, em vão.
Os pombos, ao contrário, voavam para roubar qualquer farelo seco rejeitado pelos patos. Meu filho, ciente de que os pombos transmitem doenças, procurava enxotá-los. Como alternativa, ofertava o pão aos pardais, que também pareciam ter fome, mas não tinham força nem tamanho para enfrentar os pombos. Os pardais eram atropelados pelas garras e bicos das aves cinzentas, grandalhonas, habituadas à dureza urbana, à luta pela sobrevivência, algumas até marcadas por essa luta, com asas machucadas e dedos amputados.
Meu filho começou a se frustrar. Propus que voltássemos à casa. Haveríamos de encontrar alguma gaivota faminta pelo caminho. Há muitas, perto do nosso edifício. Por mais que elas, às vezes, se portem como os pombos, revirando lixo em busca de restos de comida podre, as gaivotas são tão belas quanto os patos. E ainda emitem aquele canto gostoso, que remete ao mar, à praia, às melhores memórias de verão.
Outra família, ao nosso lado, desistiu de definir a hierarquia dos bichos que merecem ser alimentados. Os pais ofereciam pão ao filho, que oferecia pão aos pombos, e todos pareciam contentes com a decisão. Até que um senhor, sujo e depenado, passou por eles e pediu uma esmola. A mãe reclamou: Ora, é mesmo fácil pedir as coisas de graça, em vez de trabalhar para conquistá-las. E o pai soltou um não automático, a primeira resposta que ocorre aos habitantes das grandes cidades, habituados à dureza urbana.
Dizemos: Não, não quero entrar em contato com a miséria humana no meio de um momento feliz, de um dia em família num lindo jardim. Não, não quero me constranger por ter uma vida confortável enquanto outras pessoas passam fome ao meu lado. Hoje, não. Não quero que essa doença me atinja, a doença da compaixão — palavra que traz a etimologia de um sofrer junto.
Habituado aos nãos, o mendigo seguiu seu caminho, sem rumo. Mas, antes, apanhou uma garrafa no bolso da calça. Tomou um gole guloso de uma bebida transparente, que fez seu rosto se contorcer numa careta. Água que passarinho não bebe.