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Herança da colonização, queijo Minas é tese de doutorado na Universidade de Coimbra
Elcione Luciana da Silva alerta que muitas lojas vendem falsificações do queijo, classificado como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, enganando a clientela.
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A brasileira Elcione Luciana da Silva, 37 anos, tem uma boa fatia nessa história. No início de dezembro, o queijo Minas foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO, o que para a doutoranda da Universidade de Coimbra é mais do que uma vitória, mesmo que ela não faça parte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura.
Nascida em Serro, cidade onde o modo de fazer o queijo artesanal já tinha recebido em 2002 o título de Patrimônio Imaterial e Cultural de Minas Gerais, ela transformou o orgulho e o conhecimento pela famosa delícia do seu estado em sua tese de doutorado. “É uma grande responsabilidade falar do queijo Minas em Portugal e dessa relação com o Brasil”, diz Elcione. “E eu mostro como os produtores se sentem pertencentes a esse patrimônio. Não se fala de Minas Gerais sem se falar do queijo, criou-se essa relação indissociável. É uma forma de expressão importante. E as condições da nossa região, o clima e o leite, são coisas que Minas soube salvaguardar, e que têm um grande valor afetivo”.
O queijo Minas artesanal é tão importante para os seus produtores que, em 1968, aconteceu um fato, no mínimo, curioso. Por causa do “sono” das vacas, eles não aderiram ao horário de verão no Brasil. “Eles falaram que não poderiam mexer nos relógios porque as vacas acordam com o nascer do Sol e vão dormir quando o Sol se põe”, diverte-se ela.
Tudo, claro, começou com os portugueses na época da colonização. “Foram eles que, majoritariamente, levaram a técnica artesanal para a América Portuguesa”, diz, ressaltando o valor do alimento nas travessias marítimas daqueles tempos. “É nutritivo e tem características proteicas. Parecia ser a melhor alternativa para saciar a fome em longas viagens”.
Com o deslocamento da Família Real Portuguesa para o Brasil, em 1808, e a transferência do centro político e econômico de Lisboa para o Rio de Janeiro, estado que fica próximo a Minas Gerais, o produto ganhou ainda mais relevância na mesa do brasileiro. “No século XIX, no Brasil, o queijo Minas passa a substituir os importados nas receitas culinárias”, conta a mineira, que fala do destaque do alimento até os dias de hoje. “O queijo se insere em questões contemporâneas, como, por exemplo, na sustentabilidade. Tem um grande valor econômico, porque sustenta várias famílias. E é uma produção muito voltada para questões ambientais porque ocorre em áreas rurais que precisam de um meio ambiente preservado. Além disso, tem alto valor cultural, afetivo e intergeracional”, explica.
No engano
Para os imigrantes brasileiros que sentem saudade de um queijinho Minas no café da manhã, cuidado. Algumas lojas que vendem produtos nacionais podem estar enganando a clientela. “O queijo de Minas vendido aqui não tem nada de Minas Gerais. Já entrei numa loja e a pessoa falou que tinha queijo de Minas. Mas era queijo produzido em Portugal. Com leite e coalho daqui, com características climáticas diferentes. Acho que é uma tentativa de enganar o consumidor, de atrair os brasileiros que estão vivendo aqui. Embora os portugueses não conheçam a fama do queijo Minas, os brasileiros conhecem”, avisa Elcione, que também é Investigadora do Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra.
Vale ressaltar que, por ser feito com leite cru, é proibido trazê-lo do Brasil. Mas, até pouco tempo, também não era oficialmente permitido ser comercializado nem no próprio país de origem. “No início do século XX, surgiram doenças associadas ao leite cru. E nós tínhamos uma legislação antiquada, assinada por Getúlio Vargas (ex-presidente), que impedia a produção com leite cru”, afirma.
Em 2008, o modo de fazer queijo Minas artesanal foi classificado como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). “Mas, mesmo assim, até 2013, continuou restrito às fronteiras mineiras. Ninguém do Rio, de São Paulo e de outros estados brasileiros imaginava que estava consumindo um produto ilegal”, conta. “A legislação continuou dificultando a comercialização. Foi com muita insistência e teimosia que os produtores de queijo conseguiram reverter a situação”.
Com a faca e o queijo na mão, em 2011 Elcione trabalhou como produtora do documentário “O mineiro e o queijo”, sob a direção de Helvécio Ratton, que aborda as proibições e as dificuldades de comercialização do queijo Minas. “Depois da exibição da obra houve muitos questionamentos e discussões sobre a legislação. A partir daí, as leis ficaram mais compatíveis com a realidade dos produtores”, relata.
Em 2025, ela vai ao Brasil como pesquisadora e consultora do longa metragem “O melhor queijo do mundo”. Com direção de Lucas Assunção, o filme terá locações em Serro. “É uma comédia dramática que vai mostrar o cotidiano nas fazendas e o diálogo entre o queijo e o mineiro. O filme vai abordar também a contribuição e a luta de muitas gerações para manter o produto vivo”, diz a brasileira, que é formada em turismo na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), com mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Morando em Portugal há sete anos, ela não gosta de comparar o queijo Minas artesanal ao da Serra da Estrela. “São muito diferentes. E cada um tem o seu espaço. O da Serra da Estrela tem um sabor mais acentuado, feito com leite de ovelha e utiliza a flor do cardo como coagulante. Ambos são saborosos”, afirma a brasileira, cujo título da tese é As serras, os mineiros, os beirões e o queijo artesanal: identidade alimentar, turismo e sustentabilidade nas regiões produtoras em Minas Gerais (Brasil) e Serra da Estrela (Portugal). “Eu investigo também como Portugal construiu essa reputação com seu queijo”.
E por que os expatriados amam tanto um queijinho de Minas? Elcione tem a resposta na ponta da língua. “A gente já acorda comendo queijo Minas. É uma relação de muito amor. É o cartão de visitas do mineiro, que já é um povo hospitaleiro. E o queijo nunca vem sozinho, vem sempre acompanhado de boas conversas”, explica.