A vida é bela, e Lost Boys & Fairies não dá cabo dela — mesmo com lágrimas
Série da BBC estreou-se na Filmin e oferece três horas de uma história de adopção, dança, música, drag e emoção crua. Só há nove anos os casais do mesmo sexo podem adoptar em Portugal.
Lost Boys & Fairies estreou-se a 10 de Dezembro mas o ano ainda não acabou e não é tarde nem é cedo para falar dela. Especialmente porque, como noutras boas séries britânicas, a história é baseada nas experiências reais do seu autor, Daf James, e do seu marido, porque é um saltitanço de qualidade em linhas temporais (e nem sempre isso é bem conseguido) e porque em Portugal a lei que permite a adopção de crianças por casais homossexuais ainda não tem uma década e ainda há muito para aprender — por parte das instituições.
Às vezes, a ficção é necessária (ou pelo menos útil) para mostrar certos problemas a uma luz agradável ao palato (mesmo que provoque lágrimas, mas os rapazes também choram e este ano choraram muito mais no ecrã e ainda bem). Desviando momentaneamente a atenção da história de Gabriel (Sion Daniel Young) e Andy (Fra Fee) e da sua busca por uma criança necessitada de amor, casa e pais extremosos, uma olhadela para Portugal. Em Março, oito anos depois da entrada em vigor da lei da adopção por casais do mesmo sexo, o Instituto da Segurança Social revelou que cerca de 40 casais homossexuais adoptaram 55 crianças desde 2016, quando se abriu essa porta legal.
Tinha havido até então muita gente a tentar mantê-la fechada: quatro votações chumbadas no parlamento, um veto do Presidente da República Aníbal Cavaco Silva. Trinta e duas das adopções contabilizadas até fins do ano passado concretizaram-se entre 2020 e 2023 — anos quase zero de vida em sociedade, recorde-se, devido à pandemia.
Não há dados que permitam perceber se o tempo de espera ou as características das crianças integradas nestas novas famílias diferem das adopções encabeçadas por casais heterossexuais, porque não é feita a desagregação desses dados. Apesar de tudo, a Associação ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) alertara um ano antes que, apesar de não haver queixas de discriminação por parte dos serviços de adopção estatais, há uma falha: a formação dos técnicos da Segurança Social quanto à especificidade destes casais.
Voltando a Lost Boys & Fairies, conhecemos Gabriel e Andy, um performer do mundo drag e um contabilista, respectivamente, quando são entrevistados pela assistente social Jackie, interpretada por Elizabeth Berrington. Que, confirmam os críticos e os espectadores, é uma jóia desta história, mesmo sendo penetrante, abrasiva por vezes, um gatilho.
Ela faz as perguntas certas e aquelas que espoletam as motivações e os traumas de Gabriel e Andy — este último tem uma série de experiências de infância que servem para retratar o país de preconceito em que cresceu e, a jusante, o mundo de preconceito que subsiste, pesem embora as cada vez mais numerosas vitórias. “Quando se passa a adolescência a ouvir que se é um erro abominável, cresce-se a acreditar que não se merece ser amado”, recorda o autor, Daf James, sobre a sua vida de jovem na Inglaterra de Margaret Thatcher, o Cavaco Silva da sua história.
Muitas histórias queer têm esse ingrediente e, tal como as de outras comunidades marginalizadas, pede-se que a sua representação no ecrã seja também, ou para variar, feita de alegria, vitória e, sobretudo, de normalidade. Pois bem, aqui também há normalidade e ela chama-se, entre outras coisas, burocracia.
No entanto, Lost Boys & Fairies tem tanto de dor quanto de júbilo. E tem uma língua diferente, o galês, que é tão bom ouvir na televisão quanto o japonês de Pachinko ou as pitadas de gaélico irlandês de Não Digas Nada, só para citar dois exemplos de uma galáxia cada vez mais brilhante de vozes no ecrã que não o inglês, britânico ou norte-americano. Cardiff é o centro de operações, Neverland é o clube onde a magia e a dança acontecem, o coração é onde esta série quer morar. E sim, também tem humor. Que alívio.