Pobreza energética: “Faz-me confusão não haver nada para as famílias de classe média”

João Pedro Gouveia, especialista em pobreza energética, diz que Portugal não progride com programas avulsos centrados em electrodomésticos e nas famílias vulneráveis. Defende inclusão da classe média.

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O investigador João Pedro Gouveia defende que o financiamento para a renovação das casas tem de "aumentar de forma significativa" DR
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“Não vamos progredir com programas avulsos [de combate à pobreza energética], do género agora é para uns e agora é para outros. Nesta área, é preciso saber evoluir e não querer sempre fazer a disrupção”, afirma João Pedro Gouveia, investigador da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, nesta entrevista ao PÚBLICO por videochamada.

Para o especialista, os novos programas de combate à pobreza energética apresentados pelo Governo – um dedicado à compra de electrodomésticos por famílias vulneráveis e outro a intervenções em áreas urbanas desfavorecidas – são “válidos”, mas parecem não estar inseridos num “pacote mais completo” que inclua a classe média e aborde o problema de forma “integrada” e “transversal”.

João Pedro Gouveia, que também é coordenador científico do Centro Europeu de Aconselhamento sobre Pobreza Energética, sugere que as famílias de classe média possam ser apoiadas na aquisição de janelas eficientes ou painéis fotovoltaicos através de benefícios fiscais relevantes.

O investigador defende ainda que o financiamento “tem de aumentar de forma significativa” e dar prioridade à parte estrutural das habitações (ou seja, à promoção do isolamento térmico).

Portugal foi o Estado-membro da União Europeia com a maior percentagem de pobreza energética (20,8%). Porque é que não estamos a progredir?
Não estamos a apostar à escala necessária para renovação das casas. O dinheiro que estamos a usar do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) para trocar as janelas por modelos mais eficientes é manifestamente pouco. O valor total que tem sido dado até ao momento para isolar as habitações deveria ser superior ao ano.

De quanto dinheiro precisamos?
Até ao momento terão sido gastos 300 milhões de euros, creio que não mais. Fizemos uma investigação há uns anos que identificou que a necessidade para renovar as casas em Portugal, em termos de componente passiva (ou seja, isolamento, cobertura de fachadas e troca de janelas), era de 72 mil milhões de euros. Isto era um valor que não está muito longe da Estratégia Nacional de Longo Prazo [para o Combate à Pobreza Energética 2023-2050], que diz que esse mesmo valor, somado à componente de equipamentos (climatização), talvez andasse à volta dos 120 mil milhões de euros.

Precisamos de investir mais na renovação das casas?
Sim. Por um lado, mesmo que os financiamentos actuais continuem à escala anterior não conseguimos chegar a esses objectivos. Por outro, se olharmos para os últimos cinco a 10 anos, vemos que a taxa de renovação dos edifícios é muito baixa, bastante inferior às metas europeias e ao que é referido na tal Estratégia Nacional.

Estamos a negligenciar as pessoas mais vulneráveis, com menos capacidade financeira, com menos literacia energética digital. E estamos a priorizar demasiado a componente das renováveis e dos equipamentos. E porquê? Porque é muito mais difícil renovar as casas, é algo que é efectivamente mais complexo. O problema é que não se perspectiva uma evolução transformativa com estes novos apoios, nem com as ideias existentes.

O que é necessário para essa transformação?
Estou muito curioso para ver o que vai acontecer com a nova Agência para o Clima. Esta estrutura vai absorver o Fundo Ambiental, o Fundo Azul e outros. Ou seja, vai ter tudo nas suas mãos, ou grande parte da situação. Será que isto é a melhor forma de gerir especificamente este problema? Será que este era o problema principal do Fundo Ambiental e dos programas de financiamento? Tenho algumas dúvidas de que seja esta a solução.

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Portugal registou em 2023 a percentagem mais alta da União Europeia em termos de pobreza energética Getty images

O financiamento tem de aumentar de forma significativa e a prioridade deve ser dada à parte estrutural das habitações. Porque a questão da pobreza energética não se prende apenas com as pessoas estarem desconfortáveis em casa, isto tem uma associação directa à saúde pública – e falta reconhecimento desta ligação.

Quando fala em saúde pública, refere-se ao quê exactamente? Qualidade do ar interior? Hipotermia?
Há aqui várias coisas. Uma delas tem a ver com qualidade do ar interior: grande parte das habitações em Portugal usa lenha, especialmente no interior, nas zonas mais rurais. Há muitas notícias no Inverno, por exemplo, que falam de pessoas que morreram intoxicadas por monóxido de carbono. As partículas finas também são prejudiciais a longo prazo, embora ninguém morra imediatamente por causa disso.

Depois, há a questão de as pessoas passarem frio durante semanas seguidas. Vemos esta associação – e não só durante as vagas de frio. Há picos nas urgências hospitalares com, nalgumas situações, pessoas com pneumonia, doenças respiratórias e, mais a médio e longo prazo, questões cardiovasculares. Estas questões são amplificadas pela pobreza energética e pelo desconforto térmico que as pessoas têm casa. Há ainda questões como a saúde mental e o isolamento social.

Como se quantifica os ganhos do combate à pobreza energética?
É difícil quantificar a ligação entre desconforto, ou a melhoria da eficiência energética, e o grau em que as pessoas já começam a se sentir mais confortáveis. Vamos pensar nestes programas de financiamento do Estado: as pessoas que mudaram para equipamentos com bomba de calor, quão melhor estão hoje? Se lhes perguntarmos se estão mais confortáveis, se conseguem aquecer a casa, se têm o equipamento ligado toda a noite, se calhar vão dizer que estão melhor.

Claro que com um ar condicionado vão estar melhor do que estavam, mas o problema não vai estar resolvido de forma completa. Se continuam a ter a parte envolvente da habitação com má qualidade, é quase como se estivessem a aquecer a rua. Teriam de estar permanentemente com os equipamentos ligados e isso seria promover só o consumo e esse é que é o desafio. Se estivermos a falar do financiamento a larga escala, com um grande volume de dinheiro, mesmo que apostemos só na componente da climatização, isto previne muito pouco. E serve de muito pouco porque se calhar estamos a pôr em risco os objectivos de carbonização.

Isto é uma crítica ao programa E-Lar, que vai promover a compra de equipamentos mais eficientes, incluindo sistemas de ar condicionado?
Penso que é válido promover o aumento da eficiência das casas, mas no âmbito de um pacote mais completo. O problema está na indicação que estamos a dar às pessoas. Há algum programa para isolamento? O Vale Eficiência em vigor, por exemplo, não inclui isolamento. As pessoas não podem apostar no isolamento. Qual é a ideia? Estamos a dar mais dinheiro para o isolamento face aos electrodomésticos? Estamos a dar conhecimento técnico para orientar as pessoas para o isolamento? Estamos a estruturar as entidades do território para dar esse apoio? Não chega só lançar um esquema de financiamento. A ideia de disrupção entre avisos também me parece uma má ideia. Se há algumas coisas não funcionaram em avisos anteriores? Obviamente. Há margem para melhorar? Claro que sim.

Os programas anunciados não incluem isolamento? Há o Áreas Urbanas Sustentáveis para comunidades vulneráveis.
Não sabemos muito bem ainda o que é que vai sair daqui. Estou a comentar o que tenho em cima da mesa. O programa Vale Eficiência II não inclui isolamento. O programa Edifícios Mais Sustentáveis está fechado.

Está fechado e os reembolsos estão atrasados.
Eu coordeno as avaliações para o Fundo Ambiental e sei que as razões para haver atrasos não têm nada a ver com o processo em si. Isto tem a ver com quando é que se começa o processo. As candidaturas já foram todas submetidas, o programa já está encerrado e só meses depois é que alguém começa a avaliar. Portanto, é aí que está o desafio: haver este acompanhamento permanente, não haver estas disrupções. Passámos um ano inteiro em que não houve nenhum programa e depois estão três avisos a decorrer ao mesmo tempo. Isto não funciona bem nem para o mercado nem para as pessoas, pois cria confusão.

Em que consiste a confusão?
O mercado também tem picos. Se quisermos comprar uma janela agora, se calhar é fácil conseguir, pois não está nenhum programa aberto. Mas depois, quando os programas abrem, temos de esperar dois, três, seis meses ou até um ano. Deveria haver um equilíbrio.

Defende um fluxo de programas mais coordenado?
Sim. Mas aqui temos também de perceber quais foram as dinâmicas existentes. Houve uma alteração do governo, passagens de pastas e, portanto, provavelmente há também novas ideias, novos secretários de Estado, novos assessores. E, infelizmente, esta transição ocorreu no meio dos programas Edifícios Mais Sustentáveis e Vale Eficiência. Isto não ajuda. É importante haver estabilização de uma ideia, agendas políticas de longo prazo na área do combate à pobreza energética, da descarbonização, da renovação das casas. Não podemos negligenciar uma face às outras.

Os novos programas destinam-se sobretudo às famílias ou áreas vulneráveis. E a classe média?
Faz-me um bocadinho confusão não haver nada para as famílias de classe média. Não tem que ser um programa de financiamento no estilo dos actuais. Poderia ser, por exemplo, na forma de benefícios fiscais – o que seria muito interessante para pessoas que têm alguma verba para investir. Ou seja, se tenho dinheiro, quero isolar a minha casa e tenho um benefício fiscal bastante relevante, então não preciso de nenhum financiamento ou de esperar um ano ou dois.

Defende uma simplificação dos programas de financiamento?
A questão é que termos uma ideia coerente, e muitas vezes é isto que falha. Vemos um programa isolado ser anunciado – mas qual é a ideia completa em que está inserido? Depois vemos outro financiamento avulso ser anunciado. Se estamos a olhar só para um programa isoladamente, temos um grande problema. Espero que não seja isso que os ministérios façam, espero que estejam a ver o problema de forma transversal. Temos de enfrentar um problema de carbonização e temos de melhorar as casas das pessoas. Trata-se de um problema ambiental, social, económico e de saúde. Será que há uma estratégia integrada? Isto deveria ser conversado com quem trabalha no assunto, as universidades e os especialistas.

Não foi contactado para colaborar com este Governo?
Não. Colaborámos com estes programas de financiamento durante os últimos anos e trabalhamos a nível nacional e europeu nesta área. Mas depois as decisões são tomadas nos gabinetes, sem a experiência do que se fez até agora. Faz-nos um bocadinho de confusão. A senhora ministra [Maria da Graça Carvalho] lançou dois programas novos, sendo que há um ainda em vigor e outros cujas submissões acabaram recentemente. Há lá perto de 40.000 candidaturas. Tenho muitas dúvidas que isto esteja resolvido no próximo ano com a estrutura actual. E vamos lançar um novo programa para a mesma tipologia de famílias, enquanto o outro não está resolvido? Já nem falo em acabar os Edifícios Mais Sustentáveis. Ou seja, não há hoje programas para o cidadão médio português. Há muita gente desconfortável que não tem pobreza energética, mas que pretende renovar as suas casas, que quer apostar em [painéis] fotovoltaicos, que quer mudar as janelas. Não há nenhum programa à vista para essas pessoas.

Quais são as componentes que temos de integrar para ter um pacote completo?
Tudo anda à volta destes três elementos: promover a eficiência dos equipamentos, melhorar a componente passiva das casas e apostar na integração das energias renováveis. Podemos dar uma prioridade diferente a cada um deles através do financiamento, mas é preciso vê-los de forma integrada. Ao olhar para o que foi anunciado até agora, não vejo uma estratégia integrada. E devia haver porque se criou uma dinâmica e é isso que vai permitir a Portugal cumprir com os objectivos. Não vamos progredir com programas avulsos, do género agora é para uns e agora é para outros. Nesta área, é preciso saber evoluir e não querer sempre fazer a disrupção.