Morreu Jimmy Carter, o Presidente activista que apagou um mandato impopular
Depois de um mandato que se tornou sinónimo de indecisão e de fraqueza, a dedicação de Carter à defesa dos direitos humanos fez dele um dos ex-presidentes dos EUA mais populares de sempre.
Jimmy Carter, o antigo Presidente dos Estados Unidos da América que conseguiu apagar a controvérsia de uma curta passagem pela Casa Branca, entre 1977 e 1981, com uma segunda metade de vida dedicada à promoção dos direitos humanos e à democracia em todo o mundo, morreu este domingo, 29 de Dezembro, no seu estado natal da Georgia, aos 100 anos.
Carter começou a receber cuidados paliativos domiciliários em Fevereiro de 2023, na pequena localidade de Plains, onde nascera a 1 de Outubro de 1924, no seio de uma família de produtores de amendoins.
O seu estado de saúde agravou-se a partir de 2015, na sequência de uma operação ao fígado. Os exames que se seguiram revelaram um melanoma metastizado.
Depois de uma rápida remissão, a saúde de Carter voltou a sofrer um abalo em 2019, na sequência de três quedas que o levaram à mesa de operações por quatro vezes, incluindo uma para o alívio da pressão no cérebro causada pelo sangramento resultante dos acidentes.
Ainda em 2019, poucos dias após o seu 95.º aniversário, voltou ao hospital para ser suturado com 14 pontos no sobrolho esquerdo.
Foi com um penso branco quase a tapar-lhe a vista que Carter surgiu em Nashville, no Tennessee, poucas horas depois da operação ao sobrolho, para inaugurar a reconstrução de 21 habitações, num projecto da organização norte-americana Habitat for Humanity.
Esse trabalho virado para a comunidade, em conjunto com o patrocínio dos acordos de paz entre Israel e o Egipto durante os anos em que esteve na Casa Branca, valeu-lhe a distinção com o Prémio Nobel da Paz em 2002, “por décadas de esforços incansáveis em busca de soluções pacíficas para conflitos internacionais, na promoção da democracia e dos direitos humanos, e no desenvolvimento económico e social”.
Esperança, desilusão, regresso
A dedicação de Carter a causas como o apoio à erradicação de doenças e o combate à pobreza, mas também a supervisão de eleições e a mediação de conflitos internacionais, começou logo após a sua saída da Casa Branca, em Janeiro de 1981.
Dois meses antes, em Novembro de 1980, Carter perdera a corrida a um segundo mandato contra o seu adversário do Partido Republicano, Ronald Reagan, num dos resultados mais desequilibrados de sempre na história eleitoral do país: Reagan ganhou a eleição em 44 dos 50 estados norte-americanos e recebeu mais oito milhões de votos do que Carter em todo o país.
Era o ponto final numa Presidência de quatro anos que começara com uma promessa de confiança renovada após o escândalo de Watergate e a renúncia de Richard Nixon, e que terminava com a imagem de um Presidente fraco e sem capacidade de reacção perante a crise dos reféns norte-americanos no Irão, entre Novembro de 1979 e Janeiro de 1981.
Nos anos que se seguiram à sua eleição para a Casa Branca, em 1976, Carter não conseguiu provar que era ele o antídoto para a derrocada da confiança nas instituições políticas que acompanhou os anos traumáticos da guerra no Vietname, da luta pelos direitos civis, dos assassínios políticos — do Presidente John F. Kennedy; do seu irmão e candidato à Casa Branca, Robert F. Kennedy; e do reverendo Martin Luther King Jr., entre outros — e do envolvimento da Casa Branca no escândalo de Watergate.
Um pouco à semelhança do que aconteceu na eleição presidencial de 2020, quando parte do eleitorado terá votado no candidato que prometia deixar para trás os anos conturbados da Administração Trump, Carter também beneficiou do cansaço da população dos EUA com os anos da Administração Nixon.
Visto como um homem íntegro e honesto, herdou as consequências da crise do petróleo de 1973 que levou ao aumento da inflação e do desemprego nos EUA, e que fez dele o porta-voz de medidas de austeridade que foram mal recebidas pelos eleitores.
O sucesso no plano internacional, com a assinatura dos Acordos de Camp David, em 1978, não compensou os problemas internos e a crise dos reféns no Irão, que viria a estalar um ano depois.
O desfecho dessa crise, com a libertação dos reféns norte-americanos estrategicamente anunciada pelo Presidente Reagan no dia da sua tomada de posse, a 20 de Janeiro de 1981, consolidou a imagem de fraqueza e de indecisão política de Carter — que viria a ser atenuada, e até apagada, pelo seu trabalho no Carter Center nas quatro décadas seguintes.
No último ano na Casa Branca, a popularidade de Carter caiu de 56% em Janeiro para 34% em Dezembro, depois de máximos acima dos 70% nos primeiros meses como Presidente dos EUA, no início de 1977.
Quatro décadas depois, no primeiro trimestre de 2024, Carter é o 9.º ex-Presidente dos EUA mais popular de sempre, segundo o instituto YouGov. Numa lista liderada por Abraham Lincoln, George Washington e John F. Kennedy, Carter surge com 61% de popularidade, à frente de Barack Obama (59%), Ronald Reagan (56%), Bill Clinton (47%), George W. Bush (47%) e Donald Trump (43%).
"Há uma visão revisionista emergente, segundo a qual Carter foi um Presidente dos EUA muito melhor do que as pessoas pensam — um falhanço político na altura, ensombrado por Reagan, mas ainda assim um sucesso substantivo e visionário", disse o jornalista e escritor Jonathan Alter, biógrafo de Carter, num artigo publicado no Washington Post em Janeiro de 2022.
"O resumo fácil que é feito sobre Carter — um mau Presidente, um excelente ex-Presidente — é enganador", afirmou Alter. "O seu trabalho na Casa Branca tem sido desvalorizado de forma consistente, e as suas conquistas nos anos que se seguiram, apesar de serem inspiradoras, são um pouco sobrevalorizadas."
"Jimmy quem?”
Em finais de 1975, quando se candidatou às primárias presidenciais do Partido Democrata, Carter era pouco mais do que uma curiosidade no meio dos 12 candidatos que lutavam pela nomeação, num período marcado pelo enfraquecimento do Partido Republicano de Nixon, e que deixara o país desejoso de mudança. Gerald Ford, o vice-presidente que subira à Sala Oval após a demissão de Nixon, em Agosto de 1974, condenara-se a si próprio à derrota ao emitir um perdão presidencial em nome do seu antigo chefe.
A atestar a falta de reconhecimento de Carter junto do eleitorado nacional nos EUA, em 1975, o jornal Atlanta Constitution, da Georgia, questionou a sua candidatura às primárias do Partido Democrata com um título que ficou para a História: “Jimmy Who Is Running for What!?” ("Jimmy quem candidatou-se a quê?")
Dois anos antes, em 1973, a meio do seu mandato como governador da Georgia, Carter participou no programa de televisão What’s My Line?, em que um painel de concorrentes tentava adivinhar a profissão do convidado. Nesse episódio, os concorrentes só acertaram no cargo de Carter após sete perguntas, num máximo de dez.
Nascido a 1 de Outubro de 1924 num estado onde o racismo continuou a ser condição essencial para se fazer carreira política nas décadas seguintes, e filho de um segregacionista, James Earl Carter Jr. surgiu numa capa da revista Time, em Maio de 1971, como exemplo de uma nova geração de governadores moderados no Sul dos EUA.
Durante a campanha de 1970 para governador da Georgia — na qual a sua mulher, Rosalynn Carter, que morreu em 2023, teve um papel fundamental —, Carter apresentara-se aos eleitores como um candidato sem grande vontade de lutar contra o racismo no seu estado. Assim que foi eleito, e logo no discurso de tomada de posse, operou uma reviravolta completa e decretou: “A época da discriminação racial chegou ao fim.”
“Nenhuma pessoa pobre, rural, fraca ou negra deve ser obrigada a suportar o fardo de ser privada do acesso à educação, a uma profissão ou à justiça”, disse Carter, na altura, perante a estupefacção de muitos dos seus apoiantes segregacionistas, que viram a mudança como uma traição.
Uma década depois, no seu discurso de despedida da Casa Branca, a 14 de Janeiro de 1981, fez um diagnóstico do país que parece ter sido presciente à luz dos acontecimentos dos últimos anos.
“Hoje em dia, à medida que as pessoas duvidam cada vez mais da capacidade do Governo para lidar com os nossos problemas, somos cada vez mais atraídos para grupos de interesse único e para organizações com interesses especiais, por forma a garantirmos que, aconteça o que acontecer, as nossas próprias opiniões pessoais e os nossos interesses privados estão protegidos. Este é um factor de perturbação na vida política americana”, disse Carter.
No mesmo discurso, no início da década de 1980, o ex-Presidente dos EUA destacou três grandes desafios daquela época, que voltam hoje a ensombrar o mundo: “A ameaça da destruição nuclear, a gestão que fazemos dos recursos físicos do nosso planeta, e a preeminência dos direitos básicos dos seres humanos.”