Nova Iorque: A qualquer hora, em qualquer lugar
O leitor José Pedro Almeida serpenteia por Nova Iorque, guiado por expressivas memórias cinematográficas: as das curvas de Taxi Driver, os caminhos de Scorsese.
No encerramento de uma campanha eleitoral norte-americana, que ficou indelevelmente marcada pela tentativa de assassínio do candidato republicano agora vencedor, talvez seja oportuno recordar a obra cinematográfica na origem de um seu precedente histórico: a que inspirou, de modo involuntário, John Hinckley Jr. a disparar sobre o também Presidente Ronald Reagan, em 1981.
Como se depreende, refiro-me a Taxi Driver, estreado cinco anos antes, que o perturbado atirador então emulou, na expectativa de impressionar uma das actrizes femininas. Porém, mais do que as suas repercussões políticas, aqui interessa a circunstância de ser um dos retratos mais impressivos da Nova Iorque dos anos de 1970. Guiados pelas deambulações noctívagas de um taxista, sobretudo em torno de Midtown e do Harlem, assistimos ao modo como a cidade se torna uma personagem tão densa e intrigante como a psicologia complexa e contraditória do seu protagonista, Travis Bickle. Aliás, o seu mote profissional (glosado no título) poderia ser a divisa da feérica “cidade que nunca dorme”. E o cinema já a fixou no nosso imaginário a um ponto em que paisagem e memória se confundem.
A pé, o viajante dá por si a percorrer o itinerário do enredo, boa parte dele centrado numa área de cerca de 20 ruas. Seguindo a cronologia narrativa, começa-se pelo canto da 47th Street, onde foi captada a icónica imagem da personagem principal a atravessar a 8th Avenue, a fim de entreter a insónia numa sessão de cinema maroto; actualmente, a sala cedeu o lugar à Gray Line, que vende bilhetes para os autocarros turísticos, defronte do logótipo agora azulado da ubíqua cadeia de lojas de conveniência Duane Reade, adquirida, entretanto, pela rede farmacêutica Walgreens.
Já assobiando a melodia da banda sonora de Bernard Herrmann, mais acima, na W 63rd St & Broadway, deslocamo-nos ao local onde Travis avista Betsy, na sede de campanha do senador Charles Palantine, hoje ocupada pela milionésima dependência do Bank of America, igualmente perto do café onde lanchariam pela primeira vez, também substituído por outro Duane Reade. Depois, tudo se precipita; e a alienação social é, cada vez mais, pontuada por surtos aleatórios de raiva.
À medida que o negrume se acentua, aproximamo-nos do clímax: o largo em Columbus Circle (W 59th St & 8th Ave), onde decorre o segundo comício eleitoral de Palantine, alvo de uma tentativa frustrada de o aniquilar — ao invés do filme, as estátuas, no topo, estão agora cobertas de dourado. E, à boleia das curvas e contracurvas da sua vida pessoal, descemos até ao sombrio lado este de Lower Manhattan, terminando na zona prostibular, entre os números 204 e 226 de E 13th St, que será palco do sangrento tiroteio em que procura redimir-se, tentando resgatar a adolescente Iris ao seu proxeneta.
Rodado por Martin Scorsese numa fase ainda precoce da sua prolífica carreira, Taxi Driver era a prova de que o cineasta — à semelhança do seu protagonista — estava aí para as curvas.
José Pedro Almeida