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A palavra de 2024 é: alucinação
Na era da inteligência artificial alimentando bolhas cognitivas na internet, não há limites para “o mais louco possível”. É o que se depreende desse ano de 2024.
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“Todos os dias a internet me mostra algo mais louco do que eu pensava ser possível”. Essa é a experiência de um tal Austen Allred, no ex-Twitter. E @austen se refere ao vídeo do seu post: um esquiador descendo uma trilha íngreme na neve, desviando-se de rochas e pinheiros ao mesmo tempo em que faz... malabarismo.
Muito louco isso, de fato. Imagine: alguém esquiar fazendo malabarismo! Mas talvez isso não seja o mais louco do que @austen pensa ser possível. Na era da inteligência artificial alimentando bolhas cognitivas na internet, não há limites para “o mais louco possível”. É o que se depreende desse 2024, o ano em que aprendemos a descer montanhas equilibrando pinos de boliche: normalizamos viver em meio a alucinações, de forma pura e simples.
Aristóteles dizia que o absurdo se naturaliza quando, a uma ação que não faz sentido, segue-se outra ação que lhe é consequente, conferindo verossimilhança ao absurdo como um todo. É o que tivemos este ano com a nova eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, um cataclisma alucinatório que vem sendo tratado e percebido como um suave cântico de Natal nos últimos meses do ano.
Trump vai baixar o preço do milho; Trump vai restaurar a democracia no globo; Trump vai acabar com todos os conflitos; Trump vai inaugurar uma economia sem impostos; Trump vai eliminar todas as doenças; Trump vai proteger das trans os banheiros femininos... Alucina-se como nunca na América, e não só lá.
Enquanto escrevo esse artigo — estou em São Paulo —, atendo um número desconhecido no celular e eis que surge a voz de Pablo Marçal me propondo um seguro de carro 80% mais barato (!!) do que o meu seguro atual.
Se eu digo “sim” ao telefone, dou consequência aristotélica ao absurdo — a seguradora marçalina é uma miragem, me informa a Carta Capital —, assim como milhões de americanos disseram “sim” a Trump nas urnas e legitimaram na Casa Branca o fluxo jamais visto de mensagens alucinatórias (viagens supersônicas para todos!), disseminadas e direcionadas pela campanha republicana às “pessoas certas” na Internet.
Pessoas certas, nesse caso, são as de “cérebros podres”. Ou seja, as que têm sua cognição comprometida pelo tsunami de conteúdos tolos, fúteis e manifestamente absurdos que se propagam com fúria nas redes sociais. Trata-se de uma epidemia, certamente, o que justificou a escolha de “cérebro apodrecido” como a palavra do ano de 2024, pelo dicionário Oxford.
A expressão foi utilizada pela primeira vez pelo escritor norte-americano Henry David Thoreau, que já alertava, em 1854, para a imbecilização completa do intelecto e do espírito de seus contemporâneos: todos estavam mais preocupados com as batatas apodrecendo nas cestas — uma trivialidade —, do que com as grandes questões morais e espirituais da época.
Oxford também se distrai com batatas. Cérebros vêm sendo freneticamente atrofiados desde o advento do Facebook. O que há é um território aberto e terraplanado para receber — e normalizar — os absurdos mais insanos (drones extraterrestres invadem a América!), produzidos pela maior usina de alucinações desde o Apocalipse de João.
Alucinações, inclusive, são como se chamam tecnicamente os resultados absurdos produzidos pela inteligência artificial. É um termo restrito a essa próspera indústria, por ora. Para Oxford, a palavra do ano tem quem ser também popular.
Mas estamos em 2024! Temos que ser ousados, como um Elon Musk! Nossas análises têm de ser preditivas: temos de antecipar o futuro, não só o meu e o seu, mas o da humanidade, como faz o CEO do ChatGPT! Podemos, sim, esquiar fazendo malabares — com uma só mão! — e fazer algo ainda mais louco do que isso, como escolher uma palavra do ano mais apropriada do que a escolhida pelo dicionário Oxford.
E a palavra de 2024 é: alucinação.