Os temas “do Chega”

Quando um tema “pertence” a alguém, é porque os outros dele fugiram. Se há uma questão que um partido extremado consegue monopolizar, é porque os restantes desistiram de a tratar.

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Megafone P3 Daniel Rocha
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Há dias, fui confrontado com declarações de um reputado deputado que, entre o seu comentário televisivo, apresentava a seguinte tese: a Aliança Democrática procedeu à operação policial na zona do Martim Moniz com o claro objectivo de se apoderar de um tema “do Chega”. A frase, entretanto, ganhou vida própria e foi repetida por perfis políticos numa verborreia sem sentido, que apenas amplificou a desinformação.

Apercebi-me, de imediato, que mesmo uma desenvolta e sensata classe política dos maiores partidos de Portugal não se apercebe, ela própria, que está a errar de forma crassa no modo como encara o fenómeno de crescimento da extrema-direita.

A expressão “tema do Chega” merece ser dissecada. Há uma ideia perigosa aqui implícita: a de que os problemas do país podem ser exclusivos a um partido. De que as questões mais sensíveis, mais concretas ou mais desconfortáveis pertencem a alguém. E, mais grave ainda, de que falar delas é uma estratégia e não um imperativo.

Definida esta posição, não será difícil entender como a percepção é reveladora do divórcio entre os partidos políticos — juntos numa Assembleia da República isolada numa pequena ilha lisboeta e a realidade da maioria dos portugueses.

Quando um tema “pertence” a alguém é porque os outros dele fugiram. Se há uma questão que um partido extremado consegue monopolizar é porque os restantes desistiram de a tratar. Não é que a AD fale de temas do Chega, é que o Chega ocupou os silêncios. E, embora totalmente alheado de um correcto desenvolvimento de uma estratégia de políticas públicas, o Chega é, sim, absolutamente certeiro na identificação das grandes fissuras que afectam a generalidade dos portugueses.

A recente operação policial no Martim Moniz criticada por uns como desproporcionada, celebrada por outros como necessária revela, de forma bastante cristalina, este afastamento. Quem desce até aos centros das cidades sabe o que lá está. Vê pessoas fragilizadas e possivelmente manietadas pelo tráfico de seres humanos, imigrantes esquecidos e negócios parados. Vê o abandono de quem trabalha a horas tardias e o desespero de quem não tem outra forma de sobreviver. E sente, também, o receio de passar ali quando a noite cai. Estas são realidades que não pertencem a um partido. Pertencem a Lisboa. Pertencem a Portugal.

No entanto, este episódio acarreta também outra camada de complexidade. Há operações semelhantes noutros pontos do país que não têm a mesma exposição mediática, ainda que sejam de uma comparável escala. O que distingue esta foi uma fotografia que, espalhada rapidamente no X, veio acompanhada de textos comparativos exagerados e polarizadores. Esta fotografia representa um segundo de uma perspectiva, não a totalidade do dia nem a complexidade do trabalho policial.

Na verdade, os portugueses estão cansados desta lógica de pertença. Nenhum problema tem cartão de militante. A insegurança, a habitação inacessível, os salários baixos, a imigração desregulada ou o abandono dos centros urbanos não são monopólios ideológicos, mas desafios que interpelam todos, sem excepção. E esperar que a preocupação venha apenas dos extremos é abrir caminho a soluções sem moderação.

Se o Martim Moniz ou qualquer outra praça do país se tornam terrenos de opinião polarizada, a culpa não é das ruas. É de quem as ignora. Durante anos, uma certa elite política acreditou que podia afastar-se do quotidiano para se concentrar no debate ideológico. Que podia ser universal ignorando o particular. Hoje, pagamos o preço dessa negligência. Uma sociedade onde as pessoas se sentem sem representação, e onde os problemas concretos são vistos como “sujos”, populistas ou marginais. Não são. São reais.

Falar do que preocupa os portugueses é uma obrigação moral. A solução não passa, pois, por ignorar os problemas ou etiquetar quem os denuncia, mas por enfrentá-los com coragem, serenidade e, acima de tudo, sem medo de perder votos. Os partidos tradicionais que deixaram estes espaços vazios deviam rapidamente questionar-se - se não são eles a ocupar a realidade, quem o fará?

Quem perdeu o contacto com o país real deve sair à rua. Ou, pelo menos, escutar aquilo que os próximos dois actos eleitorais dirão com toda a veemência. Porque os temas não têm dono. Mas o abandono, esse, tem responsáveis.

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