Harmonização: Pratos de peixe que aquecem a alma e vinhos que os fazem brilhar
Certas espécies estão no seu melhor no Inverno. As águas estão frias, os peixes nadam menos e acumulam gordura. Pegámos em alguns deles em preparações de conforto, e juntámos vinhos a condizer.
Do mar para a mesa nos dias frios, o peixe também aquece a alma. É no Inverno que certos peixes se apresentam no seu melhor. As águas estão frias, os peixes nadam menos e, com isso, acumulam mais gordura, dizem os chefs. Além disso, acrescentam, uma dieta em mariscos e algas motiva mais gosto a mar. Revisitamos de seguida pratos de aconchego que têm por base alguns desses peixes de época. E deixamos pontos de ligação com Vinhos Verdes que lhes fazem justiça.
Arroz de tamboril
É difícil encontrar outro prato de peixe tão eficaz a aquecer-nos no Inverno como um arroz de tamboril. Poucos nos dão aquele substancioso que nos conforta e satisfaz. Por ser capaz de manter a forma, a firmeza, sem se desfazer em cozeduras mais prolongadas, o tamboril é um candidato natural a uma boa arrozada de peixe.
Ao generoso caldo que absorve a consistência do arroz, o tamboril junta os sabores a mar das suas carnes. Sabor de mar que ainda pode ser reforçado com mariscos. As ervas e temperos dão os detalhes finais a esta obra gastronómica.
Assim, à mesa, é com tudo isto que o vinho terá de lidar. Apesar de ser um prato de peixe e pensando no vinho, a atenção deve focar-se na estrutura e consistência do prato.
O arroz de tamboril é uma preparação cremosa que pede um vinho com largura e uma certa corpulência. Vinhos brancos com alguma estrutura, possivelmente fermentados em barrica, ou espumantes são um bom ponto de partida. É inevitável ter bom nível de acidez para manter o paladar animado, e frescura cítrica ou herbácea que sintonize com os aromáticos. Para concluir, procurar aqueles vinhos de boa mineralidade que atendam aos sabores do peixe e dos eventuais mariscos.
Filetes de pescada com arroz de berbigão
Pescada será dos peixes mais versáteis em culinária. Seguramente um dos que têm maior presença à mesa dos portugueses. O sabor delicado, o baixo teor de gordura, a textura macia e firme, tudo são atributos reconhecidos e motivações para uma escolha frequente.
Os filetes são um dos cortes mais requintados. Geralmente preparados de forma delicada, depois de temperados, podem ser panados com ovo e pão ralado e fritos, ou simplesmente grelhados, ou salteados.
O arroz é feito com um caldo aromático e no final, ou quase no final, entra o berbigão. Não esquecer nem menosprezar os coentros ou a salsa como toque final de frescura aromática. Tudo combinado resulta num carrossel de texturas, consistências e técnicas culinárias.
Para competir com o prato deve-se evitar vinho demasiado pesado ou demasiado opulento para não ofuscar a delicadeza da pescada e a frescura do berbigão. Já o arroz exige um pouco de corpo ao vinho, mas algo que fique ali a meio caminho, seja branco, rosé, tinto ou espumante.
Acidez e mineralidade são obrigatórios. A primeira para manter a frescura do paladar e promover um jogo de crocantes e estaladiços com o bago do arroz e do polme que envolve o peixe. A mineralidade, lá está, visa a aliança com a salinidade do peixe e dos mariscos.
Polvo assado com batata-doce
O polvo assado com batata-doce é um prato de um certo conforto que combina sabores intensos e profundos. Quando bem preparado – ou seja, macio, mas firme –, o polvo, ao ser grelhado, assado ou salteado, ganha uma camada de caramelizado que lhe intensifica o sabor. Já a batata-doce assada traz uma textura cremosa e um sabor naturalmente doce. Juntos, formam um prato rico e suculento num diálogo entre a doçura das batatas e o “salgado” próprio do polvo.
Se a base deste prato é o conforto e a capacidade de saciar, esses são os sentimentos que devem guiar a escolha de vinho para uma harmonização bem-sucedida.
Uma estrutura mais substancial e corpo moderado a elevado do vinho são os princípios de base, quer se trate de vinho branco, rosé ou espumante. No tinto, queremos alguma substância, sim, mas deve prevalecer a maciez. Evitar os de taninos mais aguerridos ou duros.
A doçura da batata-doce e a consistência do polvo pedem vinhos frutados de boa maturação. O que não pode faltar é a necessária frescura ácida que afasta qualquer sensação de peso ou aborrecimento. Além disso, é decisivo articular os aromas do prato com os do vinho. Por exemplo, nuances tostadas ou amadeiradas do vinho evocam os sabores caramelizados da confecção. Por último, garantir o mesmo nível de persistência. Uma coisa leva à outra e é só aproveitar.
Sopa de cação
A sopa de cação é um prato emblemático da cozinha alentejana, que sobressai pela sua simplicidade sem abdicar do sabor. Esta receita, feita com cação, pão e ervas aromáticas como coentros ou poejo, é um exemplo da necessidade que aguçou o engenho e puxou a criatividade das gentes. De tal maneira que souberam transformar um peixe de sabor peculiar numa iguaria muito apreciada.
O cação, de carne branca e firme, é inicialmente marinado em vinagre para amaciar as espinhas e reduzir o peculiar sabor. Depois de limpo e cortado em postas, o peixe cozinha num caldo aromático, enriquecido pelas ervas aromáticas típicas da região. No final, a sopa é servida sobre fatias de pão caseiro, torrado ou embebido no caldo, que absorve os sabores.
O prato pede vinhos de uma certa leveza, texturados, com acidez viva e boa presença aromática, que ecoem os sabores da iguaria, como cítricos, tropicais e ervas aromáticas. Apontamentos a mineral ou de maresia são bem-vindos, sinalizando a ligação ao sabor do peixe.
Vinhos brancos de corpo moderado, espumantes em geral e rosados de meio corpo e de persistência notória devem ser as primeiras opções a vir à cabeça. Um toque de madeira não trará mal ao mundo, se mais discreta do que protagonista.
Este artigo foi publicado na edição n.º 14 da revista Singular.
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