Os “nossos” tempos do Inquérito

Uma obra fac-símile editada pelo PÚBLICO, em parceria com a Ordem dos Arquitectos e a editora A Bela e o Monstro. Não perca os 12 fascículos, distribuídos todas as sextas-feiras, com o PÚBLICO.

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Bons tempos foram aqueles, à volta de 1955, período em que decorreu o sempre designado Inquérito, intitulado “Arquitectura Popular em Portugal”, editado inicialmente em 1961 e cuja 3ª edição datada de 1988 se encontra esgotada há largos anos.

Integrei a equipa dirigida pelo arquitecto Fernando Távora, mas, pela circunstância de me encontrar ainda na situação de estagiário, no seu gabinete, não obedecia integralmente as especificações indicadas pelo então Sindicato Nacional dos Arquitectos, conforme a planificação aprovada pelo Ministério das Obras Públicas.

Para vencer este “obstáculo” e reconhecendo o meu interesse em integrar a sua equipa, aconselhou-me a falar ao mestre Carlos Ramos, director da então Escola Superior de Belas-Artes do Porto, o que logo fiz no dia imediato, levando-lhe algumas imagens que tinha feito, tempos antes, em Veiga, pequena aldeia transmontana situada próximo a Quintela de Lampaças, incluindo, entre essas, uma de duas crianças gémeas, bem pequenas, metidas num caixote de madeira, feita pelo pai, qual orgulhoso S. José carpinteiro dos nossos dias.

Mas, só após o meu compromisso perante o então presidente do SNA, arquitecto Inácio Peres Fernandes, de terminar rapidamente o chamado “curso superior” é que pude concretizar a minha integração na equipa encarregada de estudar e recolher imagens da velha “arquitectura sem arquitecto” na então designada zona 1.

Começámos o nosso trabalho de campo à volta de Agosto de 1955 pelo Município de Barcelos, subdividido em 61 freguesias, o que logo nos obrigou a repensar os percursos a fazer, tal a teia de tantos lugares, todos com as suas capelas paroquiais e os seus pequenos centros de expressão mais concentrada, tudo isto nos obrigou a reorganizar um novo “calendário” para os percursos inicialmente pensados.

O “pouso” inicial então escolhido foi a Pensão Bagoeira, onde à noite recolhíamos a “Lambretta”, entre dois dos enormes pipos da adega existentes por detrás do longo balcão onde se vendia o vinho ao copo e, assim, nos habituámos a pernoitar nesta pensão, então tão típica e limpa, sem comparação com outros modestos alojamentos, ditos para “passantes” e que, na época, serviam para hospedar os vendedores que percorriam a província, angariando encomendas da mais variada espécie para aquelas pequenas vendas do “tem tudo”, ainda muito vulgares na época do nosso Inquérito.

Esta scooter, com a matrícula LL-44-73, com a qual percorremos mais de 9500 km, permitiu-nos chegar a locais onde a vida parecia ter parado no tempo, mesmo partilhando os furos nos pneus, provocados pelos cravos das ferraduras das animálias que iam deixando pelo caminho, avarias várias, alguns tombos, mas, também, conversas maravilhosas com aquelas boas gentes que então ainda existiam.

E aqui recordo, foi igualmente a autêntica surpresa ao reconhecermos todo o valor daquelas arquitecturas, sempre aproveitando a melhor insolação, o relevo do terreno para uma melhor implantação com um mínimo de movimento de terras e dimensionadas de acordo com as necessidades efectivas daquelas populações rurais.

Este saber popular, herdeiro do conhecimento acumulado desde os seus ancestrais, foi uma experiência da maior importância e que muito marcou a minha geração.

Seguiu-se o trabalho de organização do material recolhido e, para isso, o mestre Carlos Ramos providenciou a cedência de uma ampla sala de aulas no 1º andar da Escola (como sempre a minha geração designava a EBAP).

Aí, trabalhámos todos na preparação da maquete do Inquérito, escolhendo as imagens mais significativas e redigindo um primeiro texto, sucessivamente corrigido pelos então designados chefes das equipas, o arquitecto Fernando Távora e o arquitecto Octávio Lixa Filgueiras, revendo os nossos apontamentos tomados meses antes.

Tínhamos a nosso cargo uma mancha do território muito grande e complexa, desde Melgaço até Coimbra (felizmente depois reduzida um pouco mais para norte) e no sentido do interior, até próximo a uma linha vertical limitada pela zona de Amarante.

Um mundo. No entanto!

Mas o entusiasmo de Fernando Távora, a sua perspicácia, a sua capacidade de análise, reforçava a nossa missão pioneira, que, digamos de passagem, não cumpria, nem cumpriu os desígnios do Governo de então, que pretendia, sim, um “catálogo” exemplificativo de modelos regionais e não um estudo analítico que mostrasse como a geografia, a história e a economia rural, entre outros factores, condicionam, estimulam e moldam a criatividade do homem perante a Mãe Natureza.

Mantenho viva uma grande saudade desses tempos que pude usufruir, pela forma como Fernando Távora se posicionava face a muitos destes momentos usufruídos e que aqui recordo no seu dito tão humano: “Viver é uma coisa que não tem preço...”

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