Uma estrela de Bach para iluminar o Natal na Gulbenkian

Uma interpretação clara, mas não esfuziante, da Oratória de Natal. Com o Coro Gulbenkian em muito bom nível e cantores solistas com qualidades, mas só um fora de série.

cultura,coro-gulbenkian,bach,fundacao-calouste-gulbenkian,critica,culturaipsilon,
Fotogaleria
O Coro Gulbenkian a interpretar a Oratória de Natal de Bach Jorge Carmona / Gulbenkian Música 
cultura,coro-gulbenkian,bach,fundacao-calouste-gulbenkian,critica,culturaipsilon,
Fotogaleria
A maestrina eslovena Martina Batic, actual titular do Coro Gulbenkian Jorge Carmona / Gulbenkian Música 
cultura,coro-gulbenkian,bach,fundacao-calouste-gulbenkian,critica,culturaipsilon,
Fotogaleria
Entre os cantores, sobressaiu um fora de série, o tenor norte-americano Zachary Wilder Jorge Carmona / Gulbenkian Música 
Ouça este artigo
00:00
04:32

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Antes de ouvir esta Oratória de Natal na Gulbenkian, empanturrámo-nos com Bach, como quem exagera no bolo-rei. É que há dezenas de excelentes gravações desta oratória, com tempos e dinâmicas bem diferentes, com instrumentos modernos ou da época, com cantores de estilos variadíssimos e opções estéticas para todos os paladares.

Claro que ao vivo tudo é diferente, e tocam-nos de outro modo a alegria e a graça desta série de cantatas de Bach escritas para o Natal de 1734 em Leipzig. Foi preciso esperar mais de um século para a ouvir de novo depois dessa estreia, porque só os românticos (Mendelssohn foi um dos primeiros entusiastas) começaram a ter a mania moderna da História, da “preservação” e da “revisão” da música do passado. Descobriram Bach e actualizaram-lhe o estilo, o tom e o sentido.

E hoje? Que fazer com esta música, a quase três séculos de distância, sem a mumificar?

Para além de apostar na clareza de linhas e na limpidez estrutural, a maestrina eslovena Martina Batič, actual titular do Coro Gulbenkian, fez algumas opções interessantes, sobretudo ao nível dinâmico. Só foi pena o “tique” de terminar cada número com uma suspensão sempre igual antes do acorde final. Bach precisa de mais diferença, como antídoto para a repetição que a sua música pressupõe. Em relação às velocidades, a margem de liberdade é grande, e Batič arriscou, aqui e ali, esticar ou apressar um pouco os tempos. No início da segunda cantata, por exemplo, fez com calma o coro inicial. É curioso o que se perde e o que se ganha em opções como esta: o que se perde no balanço, pode ganhar-se na compreensão dos detalhes tímbricos. Muito é possível ainda fazer de Bach. E toda a música só vive quando é posta em acção, é uma das suas belezas. Um dos perigos, com o divino Bach, é embalsamá-lo. Até os faraós precisavam de uns rituais de rejuvenescimento de tantos em tantos anos.

Logo no início, num apelo à alegria e ao louvor dos dias (“Jauchzet, frohlocket, auf, preiset die Tage”), um coro Gulbenkian com 32 elementos, na táctica 4x8 (oito elementos por voz), mostrou que ia ser peça fundamental deste concerto, em que ouvimos quatro das seis cantatas da Oratória de Natal de Bach: I, II, III e saltando depois para a VI.

Já voltamos ao coro. Mas vamos antes aos cantores, apressando o resumo. Todos tinham qualidades, mas só um sobressaiu: Zachary Wilder, tenor, que nem impressionou nos primeiros recitativos, com dicção do alemão às vezes pouco clara. Ele teve o papel de narrador-Evangelista, cantando ali ao lado do órgão e do baixo-contínuo, para além das árias de tenor em que se chegava à frente. Mas na ária "Acorrei, pastores", ao lado de uma espantosa Amalia Tortajada na flauta, Zachary Wilder foi esplêndido. E, a partir daí, voltou ainda melhor como Evangelista, para confirmar depois, na sexta e última cantata, numa ária com oboés d'amore e todo o baixo contínuo em grande nível, que é um cantor fora de série, ágil, enérgico, empolgante, daqueles que faz parecer tudo fácil.

A soprano Melody Louledjian teve o seu melhor momento no final (“Basta um gesto das suas mãos”) mas não impressionou antes disso. No belo dueto da cantata III, com o baixo Jasper Schweppe, não se escangalhou a música, mas também não houve o ímpeto suficiente para cantar o “novo de novo” (“Wieder neu”). Schweppe teve alguns bons recitativos, com dicção perfeita, mas a suavidade excessiva, um pouco defensiva nos agudos, não lhe deu potência vocal suficiente para mostrar na música a aparente contradição de “aquele que sustenta o mundo” dormir em berço duro. Apreciámos o timbre da mezzo Marie-George Monet, que fez uma bela canção de embalar (“Dorme, meu menino”), muito integrada na orquestra e com uma óptima escuta de cantora, mas ficou um pouco lisa demais na ária de contralto da terceira cantata, com um violino muito afinado mas um pouco rígido a não ajudar.

Voltemos ao Coro Gulbenkian, que fez um trabalho de preparação muito bom (orientado por Inês Tavares Lopes e Martina Batič) e que cantou admiravelmente, com todas as nuances, das passagens contrapontísticas aos coros em que é uma respiração conjunta que se pede. Todos os coros, da misericórdia à fúria, da alegria à compaixão, foram pontos altos da noite.

Bach parodia-se a si mesmo, reutiliza materiais de todas as maneiras possíveis, entusiasma-se com o jogo da música nesta oratória épica (não é drama, é só uma história contada). Tudo feito para Deus e para os nossos ouvidos. Um grande auditório da Gulbenkian quase cheio aplaudiu de pé, mas uma parte parecia levantar-se mais com pressa de sair do que como agradecimento aos cantores, ao coro, e àqueles trompetes que deram o brilho final a este Natal.

Sugerir correcção
Comentar