Maria tem vários problemas para gerir na casa onde vive. A casa é quente no Verão, fria no Inverno, há infiltrações de água e bolor em alguns cantos das divisões, rachas nas paredes, telhas partidas, o vento parece soprar com cada vez mais força para dentro da sala porque as brechas que se abriram nas janelas cederam com o tempo e o mau tempo. A situação não é fácil.

Maria não pode mudar de casa. Esta é a única que tem e pode ter. Tem de prevenir mais estragos na casa, mas também precisa de consertar o que já se estragou. Há alguns danos irremediáveis e ela sabe que algumas coisas nunca serão como já foram um dia. Agora, para enfrentar o perigo que a rodeia é preciso dinheiro e, se o conseguir, é também preciso um bom plano. Por onde começar?

Estamos no final de 2024 e os problemas de Maria já começaram há muito tempo. Os remendos e outros esforços não ajudam a garantir um futuro em segurança. A casa desfaz-se perante os seus olhos e, como um ser vivo enorme, morre aos bocadinhos como um velho só e doente. Maria precisa de ajuda.

Maria não vive sozinha. Vive com várias pessoas. A casa é grande e, por ali, passa muita gente. Há gente que cuida, há gente que tenta ajudar em pequenos ou grandes gestos, gente que suja, gente que simplesmente não se importa e encara este lar como um lugar de passagem, onde vivem, comem e dormem. E morrem. Há gente rica que não faz nada e só passa por ali e gente pobre que se abriga e sofre como ela sem poder ajudar.

Quando Maria bateu à porta dos senhorios eles acenaram com uma esmola e adiaram (para um amanhã que nunca mais chega) uma solução mais robusta, mais definitiva para o seu problema. Enquanto isso, que viva como consiga. Que sobreviva.

Entre os seus vizinhos, há quem a aconselhe e a console. Há quem a mande para a rua gritar e quem lhe feche a porta na cara, cansado de a ouvir falar em desgraças. Há mesmo quem não acredite em Maria, afinal, uma casa é só uma casa e não há nada que não se resolva com uma boa engenharia que alguém um dia vai inventar.

Este ano bateu todos os recordes. Quase morreu de calor, deflagraram fogos, tentou travar inundações e as violentas tempestades feriram a casa frágil como nunca haviam feito antes. Maria, como a casa, perde as forças.

Lembra-se das palavras de António que a avisavam para os perigos que corre, que ameaçou os senhorios com uma catástrofe se não pagassem já pela recuperação do seu lar. Porém, de nada parecem servir as ameaças de António. Lembra-se dos constantes avisos sobre não haver tempo a perder. Mas, sem tempo a perder e sem dinheiro para gastar, Maria sobrevive numa crescente agonia.

Maria somos todos nós. Ou quase todos. Todos nós devíamos ser Maria. E sentir a sua casa como nossa. O nosso lar, o nosso planeta.

Como a casa de Maria, a Terra sofre as consequências do nosso descuido, como as mudanças climáticas, a poluição e a degradação ambiental. Em resumo, se olharmos para a Terra como uma casa, a repisada analogia continua a trazer-nos a mesma velha lição clara: a nossa responsabilidade é enorme. Devemos cuidar dela com a mesma dedicação que temos quando zelamos pelo nosso lar.

Em tempo de balanço de fim de ano, como fazemos sempre no PÚBLICO, olhámos para o ano que passou. Espreitámos para a casa de Maria. O que vimos está aqui, contado por Andréia Azevedo Soares. No Azul até lhe chamamos informalmente, sem ironia e com algum exagero, "a casa dos horrores". É a tal fadiga a apoderar-se do discurso e quando escrevemos sobre 2024, inevitavelmente, uma parte do ânimo é-nos roubada. Como as muitas vidas que se foram com a crise climática. Como toda a vida que se foi da casa. A espera (pela mudança de rumo) desespera-nos. 

Quer queiram, quer não, por mais conforto que as vossas vidas tenham hoje e agora, todos vivemos em casa de Maria. Estamos lá dentro.

"Nós todos somos parte de uma casa maior, e, portanto, devemos cuidar daquilo que nos foi dado", escreveu a escritora, poeta e activista norte-americana Maya Angelou, que, entre outras obras, contou a notável história da sua vida em Sei porque canta o Pássaro na Gaiola (editada pela Antígona).

Na casa de Maria também me parece que há um pássaro na gaiola a cantar. Juro que o ouço e soa a uma melodia de uma esperança tímida, com medo. Porque é que ainda canta? Talvez ainda acredite num glorioso bater de asas.

Tudo isto parece um triste conto de Natal. Não era esse o objectivo. É apenas um retrato, talvez simplista, coberto de analogias e metáforas. É mais uma tentativa de dizer o que ouvimos mil vezes durante todo o ano de 2024, dito de todas as formas possíveis no Azul, com notícias, números, ilustrações, gráficos, reportagens, entrevistas e relatórios. A partir da casa de Maria (que, já agora, pinto de Azul) deixo os inevitáveis votos de um Feliz Natal e de um futuro mais sustentável.