Um Pouco Mais de Azul: a palavra da semana é prenda

O que fazem um jornalista, um economista e uma poeta, neste episódio do podcast Um Pouco mais de Azul?

Rita Taborda Duarte fala sobre a peça de teatro A Colónia, de Marco Martins; Francisco Louçã aborda o medo do final do ano, o medo na tragédia da Síria, na desgraça da guerra no Médio Oriente, e o medo da imigração em Portugal; e Fernando Alves procura prendas numa novela de Camilo, A Viúva do Enforcado, e no noticiário avulso.


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Em baixo, pode ler três excertos do episódio desta semana.


Pode o presente não ser prenda que se estime

Fernando Alves

Uma prenda é um regalo que fazemos chegar a pessoa estimada, de tal sorte que ao nosso afecto ela se prenda. Pessoa prendada será, decerto, alguém bafejado pela sorte ou por generosidade de outrem. Mas pode ser também aquela a quem se reconhece um dom, um talento. Já uma rica prenda pode ser fraca gente, ainda que prendada. Aprenda, que eu não duro sempre. Mas não a prenda. Uma palavra, qualquer palavra, mesmo ambígua, mesmo volúvel, fútil que seja, não existe senão para a liberdade.

Que a rica prenda não penda, presa ao presente, pode o presente não ser prenda que se estime. Adiante. Vamos ao passado.

Desembrulho e folheio, aqui neste jardim, uma prenda com mais de cem anos. A Viúva do Enforcado, uma das Novelas do Minho, de Camilo, é uma prenda, como tal pensada e burilada. Não apenas porque se trata de um livro cheio de Natal – tempo de prendas – mas também porque nos faz seguir a via-sacra amorosa de uma menina prendada. E de várias ricas prendas.

Publicada em 1887, a novela é oferecida pelo autor “à Memória do Senhor Rei Dom Afonso Henriques”, em grande medida porque se passam os factos iniciais em Guimarães, tendo Camilo procurado, nas ruas e praças da cidade, em vão, uma estátua do rei fundador. “A cidade opulenta que tem oiro em barda e abriu dois Bancos como os pletóricos que se dão duas sangrias, não teve até hoje”, escreve Camilo, “um pedaço de granito que pusesse com feitio de rei sobre um pedestal”. Tomado de fervor, Camilo dá um passo em frente, quase manda embrulhar: “Se eu fosse rico, ou sequer pedreiro, quem fazia o monumento de Afonso era eu”. Sorte nossa Camilo não ter sido prendado, nem com riqueza, nem com a arte da pedra. Mas parece que o novelista estava a adivinhá-las: é isto escrito, com os devidos laçarotes, apenas 10 anos antes de verem os vimaranenses, inaugurada por D. Luís, a escultura do primeiro rei, encomendada a Soares dos Reis.

Mas Camilo nos guia pelos terrenos novelísticos com uma incursão pela arte da ourivesaria, introduzindo um tal Guilherme Nogueira que estudara pintura no Porto e regressara à oficina de seu pai, em Guimarães, de onde se esgueirava para contemplar o tesouro da Colegiada, embevecido com os cálices de prata dourada e a gargantilha da Senhora da Oliveira. E mais introduz a formosa e gentil Teresa de Jesus, a quem o pai quis casar com um tio viúvo que vivia no Porto. Certa vez, em plena festa de Natal de 1822, o tio Manuel levara à sobrinha um grilhão de oiro da sua viúva, dentro de uma rosca de pão de ló. Um grilhão não é só uma algema de pés, é um cordão que enlaça dós de peito e coração. Enfim uma prenda valiosa que afagava um suposto e apenas insinuado direito de pernada que explica a cena natalícia tão saborosa contada por Camilo: “Acompanhou o tio Manuel a sobrinha à missa do Galo e embirrou com o fidalgo do Toural que lhe atirou confeitos, a ela, e a ele dois rebuçados velhos à cara que pareciam de chumbo.”

Há-de, entretanto, o jovem ourives prendar dona Feliciana, mãe de Teresa, com o retrato da filha que fizera em segredo. Não será essa a última prenda num enredo que atira os enamorados para um exílio espanhol com novas peripécias pungentes e novas ricas prendas ficcionadas.

Também eu, leitor revisitando a saborosa novela, colhi prenda útil, dada a minha iliteracia militar. Foi n’ “A Viúva do Enforcado” que tomei nota da existência de um posto na hierarquia das tropas, o anspeçada, logo abaixo de cabo. Tal posto existiu em Portugal até à segunda metade do século XIX, sendo extinto em 1864. Umas boas páginas adiante, o reitor comenta com o cónego a tristeza do jovem ourives, dividido entre o fogoso amor pela donzela prendada e um ofício pelo qual criara um tremendo afecto. Diz o cónego: “É a poesia.” E o reitor para o jovem atormentado: “Ah, o senhor faz versos? Não lhe sabia da prenda.” Este é um sentido que não alcanço nos dicionários consultados, linguajar de cónego, querendo aqui “prenda” significar “inclinação”.

Cem anos depois, o cheque-livro foi apresentado em algum noticiário corrente como prenda do governo. O mesmo aconteceu com a aprovação do aumento do suplemento de risco para os agentes da PSP e os guardas da GNR. São certamente recursos estilísticos do jornalismo, embora não me ocorra o nome de um governante que tenha, em matéria similar, rejeitado a qualificação de uma medida benévola como prenda, por se estar afinal em presença da simples execução de uma política justa.

É nesse fio tão fino, tão frágil, que se tecem os discursos de algumas ricas prendas. Em tempos de ditadura no Brasil, estava no poder o marechal Castelo Branco, a cantora Nara Leão deu uma entrevista na qual reclamou que os militares entregassem, de novo, o poder aos civis. As altas patentes ameaçaram prendê-la. Foi quando um tal Carlos Drummond de Andrade, poeta maior, escreveu um poema dirigido ao marechal. O poema intitulava-se Apelo e nele a palavra prenda se fez verbo, verso a verso: “Meu honrado marechal /dirigente da nação, / venho fazer-lhe um apelo: / não prenda Nara Leão”. O poema é longo e belo, por ele fiquei a saber que Nara é nome de pássaro. Um nome assim, feito para voar, é mais que prenda, bênção. Não há quem o prenda.


Quem desiste de Lisboa?

Francisco Louçã

O PS desistiu do Porto. Ao apresentar Manuel Pizarro como o seu candidato mostrou que não lhe interessa disputar aquela câmara municipal. Seria preciso uma candidatura forte, um compromisso programático e uma unidade ampla e a tudo isso o PS fechou a porta ao anunciar esta escolha. Nem candidato – Pizarro já tinha concorrido e esteve aliado com Rui Moreira na vereação, pelo que não pode ser apresentado como alternativa –, nem programa, nem um vislumbre de esforço unitário, que fica comprometido pela precipitação e pela opção anunciada.

Em Lisboa é ao contrário quanto a candidatura e nem por isso é melhor: não há uma palavra, um gesto, uma iniciativa da parte do PS. Silêncio mole. Ora, Lisboa é a disputa fundamental das autárquicas e é mesmo um caso único, pelas suas implicações. É uma campanha difícil, dado que a mudança da sociologia da cidade, com a expulsão de velhos e jovens e, sobretudo, do eleitorado popular, facilita a vitória da direita. Para Moedas, que é o intérprete local do modelo madrileno de Ayuso – o máximo de agressividade social mais um discurso extrema-direitizado –, é viável consolidar a sua posição com o voto dos automobilistas, dos proprietários do alojamento local e dos reis Midas da especulação. Em qualquer caso, para a esquerda a opção é esta: ou ganha agora, e pode ganhar, pois ainda tem uma maioria na cidade, ou em cada eleição futura se tornará mais difícil. Ou ganha ou desiste.

Nos dois casos em que se registaram vitórias difíceis contra candidatos difíceis, o PS decidiu arriscar muito. Jorge Sampaio era secretário-geral e sabia que, se perdesse na câmara, a conspiração interna terminaria o seu poder. Lançou-se, o que foi a condição para a única frente ampla de esquerda que a cidade conheceu, com a aceitação do PCP (que então era a principal força eleitoral da cidade) e depois de outras forças de esquerda. Ganhou. Fez o seu percurso dando garantias à população, com um programa constituído através da participação de profissionais, associações e movimentos que trouxeram consistência a compromissos praticáveis e calendarizados. O segundo caso foi o de António Costa, que abandonou o governo e disputou a câmara. Ganhou. O primeiro saiu depois da Câmara para uma candidatura vitoriosa à Presidência, o segundo para uma candidatura vitoriosa que lhe deu o lugar de primeiro-ministro, com a "geringonça". Basta olhar para a história recente para perceber que, se o PS quer vencer, precisa de ousadia, de propostas mobilizadoras em ruptura com o passado e de conseguir unidade. Ou então apresenta uma candidatura para perder, o que por agora parece ser a sua preferência empenhada.

Vencer é também uma responsabilidade de todas as esquerdas e o tempo joga contra nós. Não é fácil. O PCP apresentou o seu candidato declarando que não admite qualquer possibilidade de entendimento. É um direito inquestionável, se prefere marcar posição. Mas o argumento para recusar a única convergência que poderia ganhar à direita é problemático: que o PS tem vindo a conciliar com a direita, como por exemplo aceitando os seus orçamentos municipais e outras políticas. A crítica é factual e precisa. Só que o próprio PCP tem valorizado circunstancialmente as oportunidades de entendimento (já fez parte de acordos de vereação com o PSD e já se absteve em orçamentos de direita, como no Porto com Rui Rio, e noutras cidades), pelo que me parece mais sensato discutir a vereação futura do que a passada.

Ora, talvez o que interesse mesmo aos habitantes de Lisboa seja quem vai governar a cidade e para fazer o quê. Continuo a pensar que uma política responsável na habitação, na gestão do espaço público, na política de transportes e transição climática ou na criação cultural é fundamental para quem vive na cidade. E disso só desiste quem quer desistir, o que parece ser a vontade do Largo do Rato, dado que, para já, parece haver mais manifestações de desistência do que empenho na vitória.

A Colónia, de Marco Martins. Uma prenda-presente à democracia, antes que esmoreça o ano

Rita Taborda Duarte

É Natal. Portanto, como avisa António Gedeão, será dia de ser bom. Quisemos, então, ser literais e trazer-vos uma prenda, para este novo episódio de Um Pouco mais de Azul. Prenda é, portanto, a palavra que vamos hoje desembrulhar, para rimar com esta quadra, cintilando de luzes e purpurinas.

A terminar o ano, roçando os natalismos que se tornaram todos os Natais, ofereço-vos lembrança da peça de teatro A Colónia, de Marcos Martins, um presente-prenda do cineasta e encenador à nossa democracia: uma oferta à sociedade que resgata ao esquecimento a memória do fascismo, e torna presentes esses tempos que importa não esquecer. O espectáculo – Marco Martins já o tem explicado – nasceu da reportagem de Joana Pereira Bastos Férias contra a Ditadura, publicada no jornal Expresso em 2021 e antes disso de uma reportagem, ainda dos anos 90, de Valentina Marcelino. Aí se contava a história de uma colónia de férias, nas Caldas da Rainha, em 1972, para filhos de presos políticos, proporcionada pela solidariedade da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos e suas Famílias. Esses 15 dias de férias ganharam o sentido de um momento inédito de devolução da infância, negada àquelas crianças, que viveram com os pais na clandestinidade, que os viram a ser presos. Meninos e meninas traumatizados, por uma vida clandestina, pelo isolamento forçado, pela prisão, a distância, a ausência dos pais, e que sentiram nos ombros frágeis, como nenhumas outras, o peso da opressão do regime: duas semanas, para, todos juntos, reaprenderem a ser crianças.

Toda uma experiência de comunidade, de partilha identitária, de memória em rede, é proporcionada ao público que assiste à peça. Daí, o seu poder de persuasão, a sua força de resistência; a sua capacidade de comover, entendendo a palavra no seu sentido primeiro e original, commouere: mobilizar, mover conjuntamente.

A peça traz, à boca de cena, os actores reais desses tempos, dessas experiências concretas: contracenam, testemunhando, Conceição Matos e Domingos Abrantes, Manuela Canais Rocha, professora de Geografia, filha de Francisco Canais Rocha e de Rosalina Labaredas, cujos nomes verdadeiros Manuela só irá conhecer depois de Abril; também Rita Veloso, Olga Sequeira Santos, Valentina Marcelino, Humberto Candeias e Conceição Lopes (monitora da colónia); suas vozes, experiências, testemunhos ecoam, em documentos pessoais, cartas, episódios, desenhos de infância, e expandem-se pela dramatização encenada dos actores em palco: João Pedro Vaz, Sara Carinhas, Ana Vilaça, Rodrigo Tomás.

Esta peça de teatro é sobretudo um poliedro: um xadrez de depoimentos afectivos, pessoais, mas também de documentos históricos, colectivos, factuais. Em palco, tudo se convoca, para erguer uma memória ampla e colectiva, uma consciência rizomática, verdadeiramente repartida, partilhada por três gerações em palco. Mais do que simbolizar, concretiza-se uma real passagem de testemunho – para além da representação – num processo de montagem, que multiplica pontos de vista, que nada ficam a dever às técnicas da narrativa cinematográfica. As palavras reais fazem ricochete nas palavras representadas pelos actores em palco, que, por sua vez convocam outros textos, para a expansão de sentido: Marinetti, Godard, Zizek, Shakespeare, Brecht; porque – e este parece ser o ponto – para uma mais ampla compreensão do mundo, ficção e não ficção avançam a par: são a mesma massa de que se forma o ser humano.

A peça exibe diferentes planos: há jovens em cena que repetem opiniões sobre a liberdade. Conceição Matos e Domingos Abrantes contam experiência de clandestinidade, também eles actores, no fundo, àquela época, alheios à própria vida. Os actores em palco fazem ressoar as narrativas recolhidas de cada um dos intervenientes na Colónia, em 1972, exibindo o esbatimento de fronteiras entre quem representa e quem é representado, entre actores e não actores. E o espectador (todo um povo, diria), através da memória feita pelas experiências únicas de cada qual, cria a consciência de um país que se molda, não permitindo que a história se torne algo abstracto, vago, lasso. Mais do que teatro documental, bem diferente da herança do cinéma verité, aquilo a que se assiste na peça é uma passagem concreta de testemunho, mais até do que uma simples partilha. Há uma frase-alarme que repercute no texto, primeiro através do eco da voz da Manuela, por intermédio da actriz que lhe empresta a fala, depois pela sua própria voz, depois pela voz de cada um e de cada qual no palco: “Confio em ti, para contares a minha história. Assim começa a peça, assim ela termina, com vozes que se erguem ao alto. E estas vozes multiplicadas em cena e fora dela é a prenda, que nos torna refém delas, o presente-oferta e o presente-actualidade, que Marco Martins, com todo este elenco, oferece ao país, antes ainda que esmoreça o ano.

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