Maria Luís Gameiro no Dakar: “Já não é só a gaja, sabem que estou aqui para competir”

É a primeira mulher portuguesa no Dakar em 15 anos. A sua ambição na prova rainha do TT é levar o carro até ao final. E aprender para voltar a competir. Na Fugas, vai relatar a experiência.

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Maria Luís Gameiro vai viver o Dakar e contar na primeira pessoa a sua experiência na Fugas Nuno Ferreira Santos
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O Rali Dakar 2025, que se realiza na Arábia Saudita entre 3 e 17 de Janeiro, conta com uma portuguesa na linha de partida — a primeira, desde Elisabete Jacinto, cuja última participação foi em 2009. Maria Luís Gameiro, 46 anos (os mesmos que a prova rainha do TT, que arrancou pela primeira vez, de Paris, a 26 de Dezembro de 1978)​, campeã feminina no Campeonato Nacional de Todo-o-Terreno e no homólogo espanhol e segundo lugar na categoria Ultimate (T1) em Espanha, apresenta-se com o mesmo navegador de Jacinto, José Marques, com a X-Raid e aos comandos da mais recente versão do T3 da equipa alemã.

Empresária e empreendedora, Maria Luís desdobra-se entre o negócio das máquinas para obras públicas, construção civil e trabalho agrícola e uma clínica de saúde hiperbárica. Mas, garante, não leva nada disso para o todo-o-terreno. “Não posso pensar em nada porque no momento em que eu penso em qualquer coisa que não seja, de facto, a corrida, a probabilidade de ter um acidente é muito grande e isso não pode acontecer”, sublinha.

À conversa com a Fugas, não sabe explicar de onde veio a paixão pelo TT. Não foi a família — nasceu no seio de uma que “não ligava absolutamente nada ao desporto automóvel” nem sequer ao automóvel — e também não se recorda de ter sido instigada por amigos. Tem, no entanto, a certeza que sempre sentiu o apelo pelo automóvel, de tal maneira que tirou a carta assim que pôde. “Ainda com 17 anos, comecei a tirar a carta para que assim que fizesse os 18 pudesse começar a conduzir — e assim foi.” A partir daí, tornou-se a condutora “oficial” da família, aos comandos de um Opel Vectra, já que o pai “não gostava mesmo” de conduzir.

Maria Luís, pelo contrário, sempre quis conduzir: “Gosto de velocidade, gosto da adrenalina” — era uma coisa muito pessoal, resume. Até porque vivia fora do perímetro da cidade de Lisboa, numa zona com poucos transportes públicos, em que o automóvel assumia protagonismo para se conquistar independência, além de significar conforto.

Só mais tarde veio o bichinho do desporto, depois de conhecer o marido, o piloto de TT José Gameiro. Durante uns três ou quatro anos, Maria Luís apenas assistia às corridas de José. Mas, ainda assim, “era uma animação”. E continua: “Foi então que percebi que havia mais de desporto motorizado para além do que a televisão mostrava. Eu basicamente o que conhecia era a Fórmula 1 e os ralis; não conhecia nada de todo-o-terreno que não fosse o Rali Dakar.”

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Maria Luís Gameiro Nuno Ferreira Santos

Do lado de fora, Maria Luís entusiasmava-se, mas também percebia que não era um desporto fácil: “O todo-o-terreno não basta querer”, admite, “é preciso poder”, realçando o facto de, como acontece em qualquer desporto motorizado, o investimento ser elevado. Só que, a dada altura, surgiu uma oportunidade: “Em 2009, havia um carrinho mais modesto na equipa”, o que fez com que abraçasse o desafio de competir na categoria T2, sem nenhuma experiência. Falou mais alto “a paixão pelos motores e a paixão por ele”.

“Testei o carro num ambiente de trilho, no Alentejo, umas duas ou três semanas antes da minha estreia, completamente verdinha.” E logo numa das provas mais emblemáticas, a Baja de Portalegre. O certo é que correu muito bem: por um lado, conseguiu acabar, algo que nem sempre acontece mesmo com pilotos experientes; por outro, o primeiro navegador foi Nuno Rodrigues da Silva, que “era e é um grande co-piloto”, que, depois de ainda tentar dar notas profissionais (“sabia lá eu o que era uma direita-dois”, ri-se), conseguiu guiá-la apenas com “esquerdas” e “direitas”. Seguiram-se algumas corridas no ano seguinte. Mas, depois, chegou 2011 e “a crise que todos nós sabemos e acabámos por abandonar o todo-o-terreno”. Afinal, explica, a prioridade eram as empresas, nas quais ainda trabalham os dois, ela e o marido.

A paixão pelo todo-o-terreno, porém, não esmoreceu, muito por causa do “factor surpresa”. “Enquanto na Fórmula 1 é uma questão de máquina e de homem, porque sabemos exactamente qual é o circuito, como nos ralis, em que há reconhecimento dos percursos, no todo-o-terreno isso não é possível; tudo muda de um dia para o outro, basta que chova.” Além disso, reforça, para lá da destreza e da força física é preciso muito equilíbrio mental e bom senso para conseguir o principal objectivo: cruzar a meta. Daí ser necessário medir entre acelerar e ter cautela, porque há que proteger a mecânica do carro. “É muito fácil acelerar e andar depressa, mas a probabilidade de capotar, estragar o carro ou ir contra um eucalipto é muito grande.” Afinal, descreve, os pilotos circulam em trial, cruzam rios, ribeiros, cruzam os terrenos mais inóspitos, e tudo isso faz com que a mecânica sofra. Só que é preciso fazer com que a mecânica aguente até ao final.”

Tudo isso serviu de motivo para o regresso, há três anos, numa altura em que as empresas estavam saudáveis para poderem patrocinar e após terem surgido rumores de que José Gameiro já não seria capaz de voltar a correr. Mas, contrariando os boatos, decidiu voltar, tornando-se, aos 76 anos, o piloto mais velho a participar numa prova de TT integrada na Taça do Mundo. “Alugou um carro, um Mini, mas detestou: é um carro pequenino e ele é um homem relativamente grande, mas divertiu-se muito e disse ‘vou arranjar outro carro, maior, e vou voltar ao todo-o-terreno’.” Maria Luís manifestou alguma pena — “O Mini é tão giro”, lembra-se de lhe dizer. E, no final do ano, uma surpresa: o marido comprou-lhe um Mini para que ela também pudesse voltar ao todo-terreno. “Fiquei completamente deliciada.”

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Acabou por alinhar no Campeonato Nacional durante o ano de 2022 e percebeu que tudo tinha mudado na última década: as corridas estavam mais profissionais, os carros tecnicamente mais evoluídos e os pilotos jovens levavam tudo muito a sério. “São muito mais competitivos.” Não tardou até que percebesse que não estava fisicamente preparada: “Fazia o ginásio do dia-a-dia, não era o suficiente para um carro mais exigente, sendo que mais velocidade obriga a ter mais força.” E, no fim da temporada, constatou que também lhe faltavam quilómetros, o que a levou a “ir fazer também umas corridas a Espanha”. A aposta deu frutos: em 2023, foi campeã feminina nacional, campeã feminina espanhola e conseguiu o vice-campeonato da categoria T1 em Espanha, ficando em quinto na geral.

Este ano, a equipa adquiriu uma versão do Mini mais competitiva, mas uma mão partida no ginásio acabaria por ditar o seu afastamento de algumas das corridas do Campeonato Nacional. Ainda assim, conseguiu fazer o Campeonato espanhol, excepto a última corrida: antes desta estava em segundo lugar na geral; a não-comparência, muito por causa de já estar embrenhada no projecto Dakar, ditou que terminasse em terceiro. “Um pódio no Campeonato espanhol foi muito bom e deixa-me entusiasmada para o que aí vem.”

Correr no Dakar, confessa, era algo com que quase nem sequer sonhava, mas quando a ideia surge percebe a grande vontade que acalentava. “Confesso que achei que já não haveria condições no meu percurso enquanto piloto para conseguir chegar lá, mas a verdade é que as coisas se precipitaram um bocadinho mais rápido do que aquilo que eu estava a contar. E no final do ano passado tive o convite de uma equipa internacional para fazer o Dakar.” Essa equipa, no entanto, não conseguiu um 4x4. “Um carro de duas rodas motrizes deixou-me preocupada. Nos últimos anos, sempre conduzi 4x4, sendo que no Dakar os carros com duas rodas motrizes não têm limite de velocidade, e se têm são 200 km/h, e a minha forma de conduzir não se coaduna.” Exemplifica: “Num 4x4, quando sinto o carro a fugir de traseira, acelero para o recuperar; num de duas rodas motrizes, se fizer o mesmo, o carro vai responder exactamente da maneira que não queremos, que é um capote certo. Ou seja, seria muito perigoso.”

Só que, mesmo com este contratempo, tudo se começou a encaixar para levar Maria Luís ao Dakar. E, no Verão, a apenas cinco meses da prova, deu-se o sinal positivo. “Estou cheia de medo, mas é um medo muito bom”, declara.

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Já o facto de ser mulher num mundo predominantemente masculino, diz, pouco a incomodou no início. Até porque, quando começou, em 2009/2010, corria inserida numa equipa e com um carro pouco potente. Ou seja, “ninguém se preocupava” com ela e o espírito ia mais no sentido do “deixem lá a miúda correr”. No regresso, porém, encontrou outro tipo de ambiente. “Quando eu agora volto, e em particular o ano passado, quando comecei a ser, se calhar, um pouco mais competitiva e depois de o meu carro ganhar a cor magenta ou cor-de-rosa, as coisas mudaram. Comecei a ouvir coisas como ‘ninguém quer ficar abaixo da linha rosa’”, que era como quem diz atrás da mulher que está a correr.

Este ano, ressalva, as coisas voltaram a mudar e começou “a sentir um pouco mais de aceitação” por parte dos outros pilotos. “Já não é só a gaja; sabem que estou aqui para competir. Creio que já me começaram a respeitar — não como mulher, que isso sempre respeitaram — como piloto.”

Para o Dakar leva outra postura, garantindo que, embora espere chegar ao final, desta vez não “vai de forma nada competitiva”, a não ser consigo: “Vou competir comigo e levar o carro até ao final.” Por isso, ainda antes de se estrear no primeiro, já traça o objectivo de regressar para um segundo Dakar, “a competir”. E de ter “uma linha rosa para ninguém querer ficar atrás — isso seria um bom sinal”.

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