Tanto peixe dá o mar, mas continuamos fiéis às mesmas espécies
Fala-se de sustentabilidade, mas, em matéria de peixe, os hábitos mudam muito pouco. Pedimos sete receitas com peixes populares ao chef Arnaldo Azevedo. Esta é a primeira da série.
É um eterno enigma da gastronomia portuguesa relacionado com o peixe. Temos mais de 200 espécies capturadas e descarregadas nas nossas lotas, mas, em média, a procura anual dos consumidores continua pelas sete/oito espécies. Tanta variedade dá o mar e nós vamos pela vida fora a consumir os mesmos peixes.
Os conceitos de sustentabilidade e sazonalidade vivem e dormem connosco todos os dias, as questões ambientais mudam os nossos comportamentos a um ritmo vertiginoso, quase temos de vergonha de andar na rua com uma garrafa de água de plástico, a oferta e procura por carros eléctricos cresce a olhos vistos, mas, diante de uma bancada de peixe, não nos interessa muito saber em que estado estão os stocks das espécies. Temos as nossas ideias feitas (gosto pelo sabor, menor número de espinhas, facilidade de confecção, relação qualidade/preço), pelo que não nos ocorre arriscar em espécies desconhecidas, mesmo que mais em conta e abundantes, e mesmo que as peixeiras experientes saibam explicar como preparar tais espécies esquisitas.
Verdade se diga que as próprias entidades públicas com responsabilidades nestas matérias também não fornecem informação funcional sobre o estado do stock das espécies. Sim, existem relatórios científicos do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) que nos dão informação para algumas espécies, mas quantos cidadãos os consultam? Como nos parece mais ou menos evidente, essa mesma informação deveria estar acessível nos pontos de venda do peixe (no clássico sistema de semáforos), para que cada cidadão tomasse as suas decisões de compra livremente. É certo que o Estado não deve dizer aos cidadãos que espécies deve ou não comer, mas já nos parece sensato que disponibilize informação fidedigna sobre o estado dos stocks.
Os cidadãos ouvem dizer que o atum está em sobrepesca, mas atuns há muitos. O que vale para o atum-rabilho vale para o atum-patudo, voador ou albacora? Lê-se que o estado das raias não é o melhor, mas a tese aplica-se a todas as espécies? As enguias, de que tanto gostamos fritas, em caldeirada ou em conserva, devemos ou não comê-las? E o robalo selvagem, esse símbolo do luxo à mesa, fará sentido metê-lo na mesa na altura em que está no período da desova?
Claro que quem também tem muita responsabilidade neste assunto é a restauração, quer a tradicional, quer a de fine dining, num exercício que é uma espécie de pescadinha de rabo na boca. Os donos dos restaurantes querem vender refeições e, para isso, as espécies ditas nobres (com grandes exemplares, claro está) dão muito jeito. Os consumidores, por seu turno, querem, pelo valor que pagam, tirar o máximo prazer possível da experiência sensorial e isso quase só acontece, em matéria de peixes, com nomes sonantes e exemplares XXL. De resto, basta ver o orgulho que os donos dos restaurantes colocam nas suas montras de peixe. Robalos, douradas, pregados, imperadores, chernes ou salmonetes, quanto maiores, melhor.
Perguntar-se-á, mas não é possível fazer-se uma grande refeição com cavalas, carapaus ou chaputas? É, lá isso é, mas, na hora de o chef comprar o peixe na lota ou na hora de o consumidor fazer o seu pedido no restaurante, quase ninguém arrisca nas espécies ditas de pescador ou de pobres. E há bons exemplos do que estamos a falar, pelas mãos de Bertílio Gomes e Paulo Morais, dois chefs que toda a vida se preocuparam com a sustentabilidade dos stocks.
O primeiro, há muitos anos, colocou na carta cavalas, mas não vendia nada. Desiludido, ia retirar o peixe quando alguém, em tom de brincadeira, lhe sugeriu que desse ao peixe um nome estrangeirado. Bertílio pensou no assunto e, através de umas pesquisas, descobriu que, nalgumas regiões piscatórias franceses, as cavalas pequenas tinham um nome curioso. E zás, as cavalas portuguesas passaram a chamar-se lizetes. Não maquereau, que é o nome da cavala em França, mas lizete (lisette, no original). E, claro, o prato de cavala rebaptizado foi um sucesso.
Menos sucesso teve Paulo Morais quando, há muito tempo, retirou das suas criações japonesas os atuns rabilho e patudo, substituindo-os por sarrajão, que é um peixe de grande riqueza de sabor e, na forma e na textura, parecido com o músculo de um atum vulgar. Resultado, quase ia à falência. Hoje, o chef do Kanazawa serve atum, mas tem sempre a preocupação de trabalhar espécies variadas e em melhor estado de stock, entre elas a tainha-de-mar, que é qualquer coisa de extraordinário.
Ora, por causa desta conversa toda, pedimos ao chef Arnaldo Azevedo que passasse pelas bancas do Mercado de Matosinhos e escolhesse sete espécies populares e com elas preparasse sete pratos. E o que resultou daqui? Sete pratos saborosos, muito fáceis de executar em casa e, melhor ainda, baratos.
Arnaldo Azevedo é um chef que tanto se sente bem a combinar ingredientes improváveis no Vila Foz, onde detém uma estrela Michelin, como a recriar receitas tradicionais ligadas ao mar no Bistrô by Vila Foz, que está inserido no Mercado de Matosinhos. Arnaldo passou pela banca do Tó Peixe e trouxe carapaus, sardinhas, cavalas, petingas, peixe-porco, sarrajão e a bela da faneca. E, numa hora, preparou sete receitas. Vamos à primeira – as seguintes serão publicadas a cada dois dias, até ao final do ano. Bom proveito!
Receita 1: Carapau de escabeche
Para nós, carapau até é peixe para fazermos piadas com gatos, mas, para os japoneses – gente que sabe alguma coisa sobre o assunto –, carapau é peixe nobre por causa do sabor, da textura e da gordura do pequeno pelágico.
O preconceito terá diferentes razões. Em primeiro lugar, trata-se de um peixe abundante, barato, muito associado às comunidades piscatórias, a comunidades com poucos recursos financeiros e a restaurantes populares. Em segundo lugar, uma das formas de confecção deste peixe (carapaus com molho à espanhola) não foi propriamente uma invenção feliz.
Na maioria das vezes o peixe chegava (ou chega) mole e o tal molho (alho picado grosseiramente, cebola, pimentão doce, salsa e vinagre) era preparado com aqueles azeites que nos deixavam a falar com o prato a tarde toda (a expressão “estar com os azeites” vem justamente do facto de ingerirmos azeites rançosos e com níveis de acidez muito elevadas). De maneira que, muitas vezes, só as batatas com casca se recomendavam (sem azeite, claro).
Todavia, qualquer pessoa com gosto educado péla-se por jaquinzinhos fritos com arroz de grelos ou de tomate. Mas estes umas vezes são permitidos, outras, não. Umas vezes chegam-nos bem fritos, sequinhos e a pedirem que nem a cabeça nem o rabo fiquem para testemunha; outras chegam-nos gordurosos ou em tamanhos que já exigem algum trabalho para separação da espinha rija.
Claro que quando o assunto é carapau “manteiga”, o caso muda de figura. Carapau “manteiga” não é nenhuma espécie particular, é apenas um dos carapaus comuns (o Trachurus trachurus), que, por via da alimentação numa determinada parte da costa portuguesa, sofre uma alteração morfológica curiosa.
Os cardumes de carapaus, subindo a partir da costa algarvia no início do Verão, atiram-se a umas algas e ao krill (uns camarões minúsculos) entre Melides e a Arrábida e ficam tão gordos que a própria gordura amarelada (da cor da manteiga) faz levantar aquela serrilha escamosa que os peixes têm no lombo. E é esta gordura que dá imenso sabor aos peixes quando são grelhados.
O sabor é tal que o carapau “manteiga” é, todos os anos, homenageado em festas populares nas comunidades piscatórias, em Setúbal e arredores. Um pescador e um gastrónomo sabem que uma coisa sãos os carapaus cinzentos e negros, outra é o carapau “manteiga”.
A próxima receita é publicada a 21 de Dezembro.