Pela nossa saúde, a insuficiência cardíaca não pode continuar invisível
Após estudo pioneiro que conclui que 770 mil portugueses sofrem da doença, a maioria sem saber, peritos recomendam acções para uma estratégia nacional, centrada na prevenção, diagnóstico e formação.
Não é possível adiar mais uma estratégia nacional para a insuficiência cardíaca (IC). Cerca de 770 mil portugueses têm esta síndrome. E a perspectiva é que, sendo esta uma doença do envelhecimento, estes números continuarão a aumentar. “Temos de começar já a prevenção”, alerta Cristina Gavina. A cardiologista foi co-investigadora, com Rui Baptista, do PORTHOS. Este estudo sobre a prevalência desta síndrome foi desenvolvido através de uma parceria entre a Sociedade Portuguesa de Cardiologia, a AstraZeneca e a NOVA Medical School e chegou agora à fase de discussão das recomendações que permitam a melhoria da gestão da IC em Portugal.
O estudo, realizado em território continental, foi conhecido em 2023 e revelou também que 9 em cada 10 pessoas desconhecem ter este diagnóstico, que é mais prevalente nas mulheres e tem assimetrias regionais muito relevantes. Desde que foi lançado este “alerta vermelho”, como Cristina Gavina definiu os resultados do PORTHOS, no último ano, um grupo multidisciplinar de peritos – em cardiologia, medicina geral e familiar, medicina interna, e investigadores (ou académicos) –, analisou os dados, discutiu-os em congressos, e definiu um conjunto de propostas que foram apresentadas neste início de Dezembro na NOVA Medical School, em Lisboa. “Há um ano vimos que havia iniquidade na distribuição da saúde em Portugal. Além da produção de conhecimento, este é um estudo que chama a atenção para a acção”, disse Hélder Pereira, presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia durante a conferência, em que estiveram representantes de outras sociedades médicas e de doentes, da Direcção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS), Direcção-Geral da Saúde (DGS), da Ordem dos Médicos, da Ordem dos Farmacêuticos, além da directora da NOVA Medical School, Helena Canhão.
Este “estudo pioneiro a nível mundial” obrigou a fazer uma reflexão necessária “sobre o impacto dos seus resultados na organização do sistema de saúde”, explicou Hugo Martinho, director médico da AstraZeneca, abrindo caminho à exposição que Rui Baptista fez sobre as recomendações traçadas pelo grupo de peritos. “A criação de um processo assistencial integrado para os doentes com insuficiência cardíaca é fundamental”, esclareceu o co-investigador do PORTHOS, listando três perguntas essenciais a que se deve dar resposta para bem gerir a insuficiência cardíaca.
Primeira pergunta: que políticas devem ser implementadas para aumentar o conhecimento da doença? Dar prioridade à IC no plano de emergência e promover a sua gestão como um modelo de doença crónica, desenvolver formação para os especialistas em Medicina Geral e Familiar. Segunda pergunta: como melhorar o diagnóstico e que ferramentas devem ser disponibilizadas? Através da implementação de um verdadeiro plano de integração entre os Cuidados de Saúde Primários e os Cuidados Hospitalares, melhorar as acessibilidades para os doentes e implementar um programa de referenciação. Questões necessariamente interligadas com a terceira pergunta a que os peritos responderam: como melhorar a referenciação e o seguimento atempado dos doentes? Formação e desenvolvimento de equipas clínicas, criação de consultas remotas com médico especialista em IC, “em especial para áreas sem cobertura de cuidados de saúde primários”, desenvolvimento do processo único electrónico.
São, portanto, necessárias acções muito concretas, “que permitam mudar a realidade que encontramos”, disse Rui Baptista. Em resumo, as palavras-chave para a gestão da IC são integração, acesso e conhecimento, como ficou claro no debate entre autoridades de saúde e representantes de sociedades médicas e dos doentes. “A IC é uma prioridade em termos de saúde pública, que se vai orientar em três eixos: prevenir, tratar, reabilitar. Não temos um referencial ou normas orientadoras clínicas nos cuidados de saúde primários. Isso é fundamental”, afirmou Fátima Franco, directora do Programa das Doenças Cerebrocardiovasculares da DGS.
Luís Filipe Pereira, que preside à Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, apelou para que exista “uma estratégia nacional”, que passe pela prevenção, diagnóstico precoce, tratamento e por uma articulação entre cuidados primários e hospitalares. A insuficiência cardíaca tem de ser vista por todos, por isso, o também antigo ministro da Saúde acrescentou ainda a necessidade de divulgação e de literacia. “É evidente que uma das barreiras tem que ver com o desconhecimento da população portuguesa. As pessoas não sabem o que é IC”, disse. Nesta área da informação, muito já foi conquistado com o desenvolvimento do PORTHOS. Este projecto iniciou-se há já cinco anos. “Partimos com o objectivo de saber qual é a prevalência da IC em Portugal em pessoas com 50 ou mais anos, e queríamos caracterizar melhor os subtipos, fazer uma estratificação por género e idade”, resumiu Cristina Gavina, co-investigadora do PORTHOS, em conjunto com Rui Baptista.
Numa parceria entre a AstraZeneca, a Sociedade Portuguesa de Cardiologia e a NOVA Medical School, montou-se uma clínica móvel que esteve instalada em 22 locais diferentes, realizando um screening, com análise ao sangue e electrocardiograma a 6189 pessoas, e questionário de sintomas e ecocardiograma para confirmação do diagnóstico a 2498 pessoas. A expectativa “conservadora” no início, segundo explicou Cristina Gavina em entrevista, era de uma prevalência esperada de 2,5% de adultos com mais de 50 anos com insuficiência cardíaca em Portugal Continental. “O número que encontrámos de 16,5% foi muito acima do esperado. Isto significa que 1 em cada 6 pessoas com mais de 50 anos vivem com IC.” E, mais, 90% destes pacientes desconheciam que tinham este diagnóstico. “O PORTHOS permitiu identificar estas pessoas, enviar cartas aos médicos de família e pedir para estarem atentos.” Isto é, foi possível iniciar uma intervenção imediata entre os participantes.
Todavia, é necessário fazer mais para chegar aos 770 mil que se estima terem a doença – sendo que a maioria deles só é diagnosticado em situações-limite, quando recorre às urgências com falta de ar ou inchaço. “A única forma de combater esta epidemia é prevenção, prevenção, prevenção”, explicou Fátima Franco. Quanto à prevenção, tudo começa muito lá atrás – e ainda na infância, de acordo com Pedro Morais Sarmento, da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. “A IC tem uma particularidade interessante, e que aprendemos na faculdade: é o fim do percurso. O doente diabético vai acabar por ser doente com IC. A hipertensão arterial, que continua a ser mal tratada (é um problema grave em Portugal) leva a que o doente progrida para IC. Nas escolas, a alimentação tem de ser correcta, porque uma progressão para a obesidade, gera diabetes e também IC”, listou o coordenador adjunto do Núcleo de Estudos de Insuficiência Cardíaca desta sociedade médica.
Acessibilidade para todos
O estudo PORTHOS identificou igualmente assimetrias regionais que, para um dos co-investigadores, Rui Baptista, se resolvem com um “SNS robusto”. “As doenças cardiovasculares habitualmente associam-se com o PIB per capita. Quanto mais baixo, maior a prevalência. No Norte, temos uma prevalência de insuficiência cardíaca que é um terço daquela que temos no Alentejo, e que é mais baixa do que temos aqui na região de Lisboa, que é a região com o PIB per capita mais alto. O que é que explica que haja mais doença onde as pessoas são mais pobres?” A equidade no acesso, explicou: “No Norte do país nós temos uma cobertura de médicos de família de 100%”, registando naquela região taxas de controlo de factores de risco para a IC (como a hipertensão, a diabetes, a obesidade) acima do resto do país. “A cobertura do doente nos cuidados de saúde primários é assimétrica. Vamos tentar resolver”, reconheceu o médico internista Edmundo Dias, da Direcção Executiva do SNS. “Queremos acessibilidade à saúde para todos os doentes e que tenham acesso ao que precisam”, disse ainda, dando como uma solução o plano de transformação digital na saúde, nomeadamente com a implementação de teleconsultas.
O PORTHOS está a fazer o seu caminho, tendo despertado os actores na área da saúde para o problema. “Criou informação, que se está a transformar em conhecimento. Esperamos que haja acção”, desejou Victor Gil, que lançou as bases para este estudo e que preside ao Conselho Estratégico do PORTHOS.