Sônia Guajajara: na crise climática, “o que afecta um, afectará todos os países”
Em 2025, o Brasil será o anfitrião da cimeira do clima. Em entrevista ao PÚBLICO, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, admite a importância da COP30: “Há uma grande expectativa no mundo.”
O Ministério dos Povos Indígenas do Brasil, encabeçado por Sônia Guajajara, foi uma das grandes novidades no terceiro Governo de Lula da Silva, com a promessa de avançar com a demarcação de terras indígenas e promover a segurança, a saúde e o bem-estar daquelas comunidades.
Logo no primeiro ano de vida, o ministério teve de responder à crise humanitária dos ianomamis, em Roraima, no Norte do Brasil, e viu o seu poder diminuir ao ser retirada a competência da demarcação dos territórios indígenas, que passou para o Ministério da Justiça. Ao mesmo tempo, a vigência da lei do marco temporal, que determina que só podem ser territórios indígenas aqueles que estavam ocupados a 5 de Outubro de 1988, data da Constituição Federal do Brasil, fazendo tábua rasa de cinco séculos de exclusão e opressão dos povos indígenas, é mais uma barreira para o avanço dos direitos daquela comunidade.
Ainda assim, passados quase dois anos do arranque do ministério, 13 dos 14 territórios indígenas que Lula tinha prometido que iriam ser homologados, já o foram. Sônia Guajajara garante que está a ser preparado um novo pacote de terras indígenas para serem demarcadas. Pelos avanços conquistados nas terras demarcadas, que são também notícias importantes para a protecção do ambiente, e também por um histórico activista reconhecido pelos direitos indígenas, a política indígena brasileira, filiada no Partido Socialismo Liberdade (PSOL), foi galardoada recentemente com o prémio Earth Champions, das Nações Unidas.
É com este gancho e com a 30.ª Cimeira do Clima no horizonte, a COP30, que vai ser realizada em Belém, no Pará, no Brasil, em Novembro de 2025, que Sônia Guajajara deu uma entrevista ao PÚBLICO. “Mesmo com a existência de 29 conferências do clima, as medidas adoptadas até aqui não foram suficientes para reduzir as emissões e frear as mudanças climáticas”, diz a ministra, que assume a expectativa que está a ser tecida em relação à próxima cimeira.
Acabou de receber o prémio Earth Champions, das Nações Unidas. O que representa este prémio?
É um reconhecimento de toda a longa trajectória no movimento indígena, na luta pelos direitos dos povos indígenas e completando agora com as acções do Ministério dos Povos Indígenas. É também uma responsabilidade para a gente seguir avançando com a demarcação dos territórios e protecção dos territórios indígenas e com a segurança dos indígenas nesses territórios.
Qual a importância da existência do primeiro Ministério dos Povos Indígenas do Brasil?
Primeiro, é a valorização dos povos indígenas. Segundo, é o protagonismo que os povos indígenas assumem a partir da ocupação de espaços políticos estratégicos no Governo Federal. A criação do ministério também desencadeou a ocupação de espaços em outros sectores, como na própria Secretaria de Saúde Indígena, no Tribunal Superior do Trabalho, no Tribunal Superior Eleitoral. Hoje, as coordenações regionais da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) são maioritariamente ocupadas por indígenas, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas também estão sendo ocupados por indígenas. Tudo isso foi uma grande luta que nós travámos para o ministério ser consolidado e poder elaborar e implementar políticas. Há ainda a valorização da identidade dos povos indígenas, que hoje são convidados para estarem ocupando espaços no mundo da moda, da música, da arte. Não dá mais para se fazer grandes eventos e não ter a representação da diversidade, incluindo dos povos indígenas.
E que transformação é que isso está a ter ao nível das comunidades?
São muitos os desafios, foram séculos de ausência do poder público, com um Estado que ainda nem estava preparado para receber os povos indígenas. É como se a gente estivesse construindo tudo do zero. Primeiro, temos de ser respeitados e valorizados nesse espaço, e de ter as condições suficientes para se implementar a política.
Ainda assim, em dois anos, já conseguimos avançar o equivalente a mais de dez anos em relação à demarcação dos territórios indígenas. Isso é significativo, porque a demarcação das terras indígenas continua sendo a bandeira de luta prioritária dos povos indígenas no Brasil. Já conseguimos homologar 13 territórios indígenas. Nos dez anos anteriores, foram 11 territórios homologados. Já realizámos a desintrusão [retirada de pessoas que estão ilegalmente num território indígena] de cinco territórios e estamos com uma lista de prioridades de outros para fazer o mesmo. Temos planos de gestão territorial e ambiental elaborados para começar a concretizar esses projectos. Não se entrega somente a terra com a assinatura, mas com um conjunto de políticas, de acções para que eles possam construir ali a sua dignidade e reconstruir a sua vida dentro desses territórios.
Qual a ambição para os próximos dois anos em termos de novas demarcações?
Ainda na transição [para o novo Governo], a gente tinha um pacote de 14 territórios para demarcar, conseguimos 13. Falta ainda um que está nessa pendência, que podemos já homologar nos próximos dias. Estamos já preparando um novo pacote a partir da finalização do processo das demarcações físicas, feita pela Funai. Mas esse número ainda não está fechado.
Como está a situação do marco temporal?
O marco temporal está vigente. Tem uma lei, a 14.701, que foi aprovada no Congresso Nacional, mesmo diante dos vetos dos Presidente Lula. O Congresso derrubou os vetos. Houve algumas acções impetradas no Supremo Tribunal Federal para que se pudesse reafirmar a inconstitucionalidade dessa lei, mas também houve pedidos de afirmação de constitucionalidade. O supremo, por sua vez, não decidiu nem por uma, nem por outra, e instalou uma Câmara de Conciliação, que está vigente, para se discutir a lei. É isso que se está fazendo, discutindo a lei para o aprimoramento e para que se possa contribuir para melhorar tudo o que é mais prejudicial aos povos indígenas. Mas a lei está valendo e nós estamos avançando com esses processos demarcatórios nos casos que não estão afectados pelo marco temporal. O marco temporal é uma grande ameaça, é muito perigoso, é um impedimento real para vários territórios indígenas e nós seguimos lutando contra ele.
Qual é a importância da demarcação desses territórios dentro da política ambiental do Governo?
Os territórios indígenas são as áreas mais preservadas no Brasil e que funcionam como uma grande barreira contra o avanço da expansão agrícola, do uso predatório da terra. São as áreas indígenas que têm a maior quantidade de floresta em pé e são essas florestas que conseguem armazenar o carbono. E são importantes para o regime das chuvas. Um estudo apresentado nas últimas semanas diz que 80% do agro-negócio depende das chuvas que são geradas nos territórios indígenas. Esse dado é muito importante para que esses sectores repensem o uso da terra e possam pensar mais no uso sustentável, a partir do exemplo e da contribuição que os povos indígenas dão para o clima, para a vida do planeta.
Em 2023 tivemos uma tragédia humana no território dos ianomamis e este ano os incêndios do Pantanal ameaçaram comunidades indígenas. A Amazónia viveu uma temporada de seca com muitos incêndios. Os “grileiros“, “garimpeiros” e o narcotráfico ameaçam os territórios indígenas e todos os anos activistas do ambiente são mortos, muitos deles indígenas. São muitas crises que se entrelaçam. Acha que a situação se está a agravar?
Isso tudo é resultado de séculos de uso predatório da terra. Se o modelo de produção de alimentos, de uso da terra, não mudar, tudo isso se vai agravar ainda mais. Mesmo com a existência de 29 conferências do clima, as medidas adoptadas até aqui não foram suficientes para reduzir as emissões e frear as mudanças climáticas. Nós estamos trabalhando no conjunto de todo o Governo, com o Ministério do Meio Ambiente, o Ministério da Fazenda, para que o Brasil tenha um Plano-Clima participativo e com as condições de se implementar políticas que possam reduzir essas emissões.
O Brasil assume essa liderança também no âmbito global das conferências do clima e da biodiversidade para que o mundo entenda que é importante o apoio, o aporte de recursos financeiros dos países ricos, para que os países que ainda têm as suas florestas em pé possam continuar a protegê-las. Para isso, é importante respeitar os direitos culturais, ambientais dos povos indígenas, que estão todos relacionados. Nós estamos trabalhando para que as políticas de facto contemplem essas realidades de povos indígenas a partir da garantia do direito territorial.
As mudanças climáticas não são um problema do futuro, são situações que já estão acontecendo, com tantos eventos extremos no Brasil e no mundo. Por isso, a responsabilidade também precisa ser compartilhada, principalmente com o compromisso dos países ricos, e de entenderem que o que afecta a um afectará todos os países. A COP30, no Brasil, traz muita expectativa de que as decisões tomadas, os acordos assumidos, possam de facto já reflectir medidas concretas para implementação de políticas para essa redução das emissões.
Como avalia a posição dos países ocidentais, na COP29, no Azerbaijão, no financiamento disponibilizado para o fundo a respostas a perdas e danos? O resultado foi muito criticado pelos países do Sul global...
Muito ruim. Os acordos foram péssimos, foi vergonhoso para esses países que precisam aportar os recursos.
Há um reconhecimento cada vez maior da importância dos povos indígenas nas questões ligadas ao ambiente e biodiversidade. Isso tem tido impacto?
Eu acho que já houve um grande avanço na participação indígena. Do que foi a COP15 e do que pode ser a COP30, temos um aumento significativo na participação indígena. Aos poucos, os povos indígenas vêm ocupando esse papel. É claro que é preciso avançar muito mais. Afinal de contas, o Acordo de Paris reconheceu o conhecimento indígena como conhecimento científico e, para que isso se implemente na prática, é preciso considerar essas contribuições.
Qual o papel dos povos indígenas na protecção do ambiente?
Os exemplos da relação com a natureza, os modos de vida, o uso sustentável da terra, os produtos da bioeconomia, que devem ser mais valorizados como contraponto às monoculturas do agro-negócio. Aos poucos, isso também vem se inserindo nos debates no âmbito das conferências globais. Os territórios indígenas funcionam como essa grande barreira contra o avanço do uso predatório da terra. Isso precisa ser considerado no âmbito das decisões.
Quais são as suas expectativas para a COP30, em Belém do Pará?
Que ali se firme os acordos necessários, tanto políticos quanto financeiros, para se apoiar e proteger quem protege a mãe Terra, a natureza e a biodiversidade. Há uma grande expectativa no mundo. Nós, que estamos ajudando aqui a construir essa COP, estamos optimistas de que teremos acordos importantes e já se começou a pensar a implementação das medidas necessárias para a gente conter essa grande crise climática no mundo.
Em Outubro passado, num texto intitulado A resposta somos nós, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazónia Brasileira dizia que “só haverá paz com a natureza se declararmos abertamente a guerra contra os combustíveis fósseis e qualquer outro projecto predatório que ameaça a vida no planeta”. Mas o Governo brasileiro continua a apostar na exploração dos combustíveis fósseis. Qual o papel do Ministério dos Povos Indígenas, no meio deste embate?
Nós seguimos com essa discussão tanto dentro do Governo quanto nos territórios indígenas. É importante respeitar os processos de consultas [no âmbito de novas explorações]. Acho que esse é o primeiro passo para que se possa tomar as decisões de forma dialogada com quem está a ser afectado nos territórios. Mas é lógico que o Brasil está preocupado e está se pensando nessa transição energética. O que estamos agora discutindo é como fazer essa transição de forma justa.
O “Acampamento Terra Livre” é o nome dado à Assembleia dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil, um encontro anual que ocorre desde 2004. O que é, para os povos indígenas, a ideia de uma terra livre?
Tenho a honra de afirmar que pude construir dez dos 20 Acampamentos Terra Livre que já aconteceram, sempre na defesa de que tenhamos os nossos territórios garantidos com a liberdade de viver culturalmente, com a segurança alimentar, com a segurança que os indígenas precisam de ter dentro dos próprios territórios. Então, “terra livre” quer dizer liberdade: a liberdade plena de termos o usufruto exclusivo dos nossos territórios, como garante a Constituição Federal.