Para travar e inverter a perda de biodiversidade e salvaguardar a vida na Terra, são necessárias mudanças profundas e urgentes na forma como as pessoas vêem e interagem com o mundo natural e os seus recursos limitados, alerta o novo Relatório das Mudanças Transformadoras divulgado esta quarta-feira. Uma acção transformadora pode ter efeitos económicos positivos, estimando-se que até 2030 possam ser gerados mais de 10 biliões de dólares (cerca de 9,5 biliões de euros) em oportunidades de negócio com abordagens económicas sustentáveis e apoiados 395 milhões de postos de trabalho a nível mundial.
O novo relatório da Plataforma Intergovernamental sobre a Biodiversidade e os Serviços dos Ecossistemas (IPBES, na sigla em inglês), que levou três anos a elaborar e contou com contributos de cem investigadores, faz uma avaliação das causas subjacentes da perda de biodiversidade, os factores determinantes de mudanças transformadoras e as opções disponíveis para as concretizar.
“A mudança transformadora é necessária porque a maioria das abordagens anteriores e actuais à conservação, que visam reformar em vez de transformar os sistemas, não conseguiram travar ou inverter o declínio da natureza em todo o mundo, o que tem graves repercussões na economia global e no bem-estar humano”, afirma a investigadora Karen O'Brien, da Universidade de Oslo (Noruega), co-presidente desta avaliação ao lado de Arun Agrawal (Universidade de Michigan, EUA) e Lucas Garibaldi (Universidade de Rio Negro, Argentina).
“De acordo com as tendências actuais, existe um sério risco de se ultrapassarem vários pontos de viragem biofísicos irreversíveis, incluindo a extinção dos recifes de coral de baixa altitude, o desaparecimento da floresta tropical na Amazónia e a perda das camadas de gelo da Gronelândia e do Antárctico Ocidental”, exemplifica.
A raiz dos problemas
As causas subjacentes à perda de biodiversidade identificadas pelo relatório estão também ligadas aos desafios globais que impedem uma acção transformadora. Uma das primeiras causas é o afastamento das pessoas da natureza, com o enraizamento de relações de domínio sobre a natureza e também sobre as outras pessoas, “especialmente as que surgiram e foram propagadas em épocas coloniais e que persistem ao longo do tempo”. Registam-se ainda crescentes desigualdades económicas e políticas, ou seja, uma “concentração desigual do poder e da riqueza”.
“As causas subjacentes à perda de biodiversidade e ao declínio da natureza também criam desigualdades e injustiças”, sublinha o investigador Arun Agrawal. Mas é possível quebrar este ciclo vicioso: “Aqueles que mais beneficiaram das actividades económicas associadas aos danos causados à natureza – em particular os mais ricos – têm mais oportunidades e recursos para criar mudanças. Se o fizerem, através de processos de tomada de decisão equilibrados envolvendo outros actores, podem desbloquear a capacidade de acção e os recursos para criar mudanças.”
Isto não é, contudo, o que se tem verificado. “O impacto das acções e dos recursos dedicados a bloquear a mudança transformadora, por exemplo, através de lobbies de grupos de interesses instalados ou da corrupção, ofusca actualmente os recursos dedicados à conservação e à utilização sustentável da biodiversidade”, lamenta Karen O'Brien.
Consumo e produção insustentáveis
Outra das causas subjacentes – e um enorme desafio às mudanças transformadoras – é a “prioridade dada aos ganhos de curto prazo” no actual sistema económico, com padrões de consumo e produção insustentáveis, desde as decisões das empresas aos hábitos e práticas individuais.
“Os nossos padrões de produção e consumo insustentáveis puseram-nos numa rota de colisão com a natureza”, sintetiza Inger Andersen, directora executiva do Programa das Nações Unidas para o Ambiente (UNEP, na sigla em inglês). “Os ecossistemas estão degradados e os serviços prestados pela natureza estão a falhar.”
Este diagnóstico liga-se com o Relatório de Avaliação sobre as Interligações entre a Biodiversidade, Água, Alimentação e Saúde, publicado pelo IPBES na terça-feira, que demonstra que esta enorme pressão sobre o mundo natural tem sido ignorada pelo sistema económico.
“A biodiversidade é vital para satisfazer as necessidades alimentares crescentes da humanidade, alimentos para animais, fibras e combustíveis”, relembra Qu Dongyu, director-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). “Precisamos de produzir mais com menos”, sublinha, “protegendo o planeta para as gerações futuras”.
“É possível”
Por fim, o acesso limitado a tecnologias limpas e a descoordenação em matéria de conhecimento e da inovação dificultam a transformação equitativa em todas as partes do mundo, aliado a “políticas inadequadas e instituições inaptas” que são transversais a todas as geografias.
“Por muito complexo e difícil que seja abordar estas causas subjacentes à perda de biodiversidade, é possível”, acredita Lucas Garibaldi. O investigador argentino dá o exemplo da enorme transformação que aconteceu durante a Revolução Industrial. “Embora essa era tenha acarretado custos ambientais e humanos terríveis, é a prova de que é possível uma mudança fundamental em todo o sistema”, descreve.
Existe, contudo, uma diferença essencial que torna o desafio de hoje mais difícil: a Revolução Industrial ocorreu durante um período de tempo “muito mais longo do que o necessário para a actual mudança transformadora para um mundo justo e sustentável”.
Cinco estratégias-chave
O Relatório das Mudanças Transformadoras destaca ainda cinco estratégias-chave que têm efeitos complementares e podem criar sinergias com um “potencial substancial” para promover uma mudança transformadora (e deliberada), incidindo sobre as três dimensões – pontos de vista, estruturas e práticas – de forma adaptativa.
A primeira estratégia é conservar e regenerar os territórios para promover a “diversidade biocultural”, ou seja, quando a protecção dos valores naturais também tem benefícios para as comunidades.
Outra estratégia consiste em promover mudanças sistémicas nos sectores mais responsáveis pela perda de biodiversidade e pelo declínio da natureza, nomeadamente a agricultura e pecuária, pescas e silvicultura – alguns dos que mais beneficiam da conservação dos ecossistemas –, assim como infra-estruturas e desenvolvimento urbano, o sector mineiro e, claro, a exploração de combustíveis fósseis.
A terceira estratégia é a transformação dos sistemas económicos em prol da natureza e da equidade, que implica, por exemplo, a reconversão dos subsídios públicos nocivos à natureza: estima-se que os subsídios a sectores que estão a contribuir para o declínio dos ecossistemas estiveram, em 2022, entre 1,4 biliões e 3,3 biliões de dólares (entre 1,33 biliões e 3,15 biliões de euros), por comparação a apenas 135 mil milhões de dólares (cerca de 130 mil milhões de euros) investidos anualmente na protecção da biodiversidade.
Outra estratégia-chave diz respeito à transformação dos sistemas de governação para que sejam “integrados, inclusivos, responsáveis e adaptáveis”, com uma participação mais significativa das comunidades implicadas. Por fim, são precisas acções focadas na mudança de pontos de vista e valores societais, de forma a reconhecer e dar prioridade às ligações fundamentais entre os seres humanos e a natureza.
Custo da inacção
A análise aos estudos de caso também demonstra que os resultados positivos para diversos indicadores económicos e ambientais podem ocorrer numa década ou menos.
Com mais de 50% do PIB mundial – equivalente a 58 biliões de dólares de actividade económica (55 biliões de euros) – gerado por actividades económicas que dependem da natureza, estima-se que o custo de adiar por uma década as acções destinadas a travar e inverter a perda de biodiversidade e o declínio da natureza em todo o mundo seja o dobro do custo de agir agora.
Uma acção transformadora no imediato pode também “desbloquear enormes oportunidades de negócio e inovação” através de abordagens económicas sustentáveis, estimando-se que até 2030 possam ser gerados mais de 10 biliões de dólares (cerca de 9,5 biliões de euros) em oportunidades de negócio e apoiados 395 milhões de postos de trabalho a nível mundial.
“É urgente uma mudança transformadora para um mundo justo e sustentável, porque a janela de oportunidade está a fechar-se para travar e inverter a perda de biodiversidade e para evitar o desencadeamento de um declínio potencialmente irreversível e o colapso previsto de funções-chave dos ecossistemas”, conclui Karen O'Brien.