Chega ao fim o ano mais quente das nossas vidas

Este ano foi o primeiro em que a temperatura média da Terra subiu 1,5 graus Celsius. Em 2024, acumulámos recordes climáticos indesejáveis e falhanços em cimeiras dedicadas ao ambiente.

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O ano de 2024 chega ao fim acumulando recordes climáticos, fenómenos extremos e cimeiras decepcionantes Getty Images
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O grande recorde climático que os jornalistas noticiaram em 2024 foi quase igual ao de 2023: este foi o ano mais quente das nossas vidas. E, ironicamente, este ano será talvez o mais fresco do resto das nossas existências. Os recordes têm sido batidos sucessivamente, confirmando aquilo que os cientistas prevêem há décadas: a única atmosfera de que dispomos está saturada de carbono e isso está a tornar a Terra cada vez mais inóspita para quase todos os seres vivos.

“Esta é a vida actual e não vai ficar mais fácil. Só vai ficar mais difícil. É isso que as alterações climáticas significam. Uma vez que continuamos a poluir a atmosfera, vamos ter, ano após ano, o oceano cada vez mais aquecido, terras cada vez mais quentes, tempestades cada vez maiores”, afirma Andrew Pershing, director de programas da Climate Central, uma organização científica sem fins lucrativos, citado pela Reuters.

Este ano foi também o primeiro em que a temperatura média da Terra subiu 1,5 graus Celsius em relação à do período pré-industrial (1850-1900), quando a humanidade não estava a queimar combustíveis desenfreadamente. A notícia, divulgada em Novembro pelo Serviço para as Alterações Climáticas do Copérnico, tem um peso simbólico, porque o limite de aquecimento global preconizado pelo Acordo de Paris era precisamente esse: 1,5 graus Celsius.

Nunca houve tantos gases com efeito de estufa na atmosfera como em 2023 e, como mostram diferentes estudos do consórcio internacional World Weather Attribution (WWA), este acúmulo contribuiu para vários fenómenos climáticos extremos que testemunhámos este ano. Foram catástrofes que provocaram mortes e destruíram casas, ecossistemas, meios de subsistência.

As alterações climáticas duplicaram a probabilidade de cheias como as da Europa Central, por exemplo, que provocaram pelo menos 24 mortos em Setembro. E tornaramduas vezes mais prováveis furacões como o Milton, que atingiu a Florida, nos Estados Unidos, em Outubro (aliás, todos os furacões de 2024 no Atlântico foram mais fortes do que teriam sido há 100 anos). A queima de combustíveis fósseis fez também com que as condições propícias a incêndios no Pantanal brasileiro fossem quatro vezes mais plausíveis em 2024.

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Zonas atingidas pelas tempestades associadas aos furacões Milton e Helene, em St. Pete Beach, Florida, Estados Unidos, fotografadas a 13 de Outubro de 2024 REUTERS/Elizabeth Frantz

“O Pantanal é uma zona húmida que não devia arder durante meses a fio, pelo que é provavelmente algo a que eu estaria atenta em 2025, ano em que veremos incêndios florestais em ecossistemas que não são tradicionalmente ecossistemas de queimadas”, disse à Reuters Friederike Otto, climatologista que dirige o consórcio WWA.

A lista de fenómenos extremos de 2024 atribuíveis à crise climática poderia continuar com as chuvas que inundaram o Rio Grande do Sul, no Brasil, ou mesmo com a onda de calor letal que, em Julho, assolou o Norte de África e a Europa.

Recusa adaptação na Europa

As cheias de Valência, que tiraram a vida a mais de 200 pessoas em Espanha no fim de Outubro, constituem o aviso mais recente de que a Europa não está imune aos fenómenos extremos. Pelo contrário, o continente está muito exposto a desastres como fogos rurais e vagas de calor.

“A Europa é o continente que regista o aquecimento mais rápido do mundo, com as ondas de calor localizadas a afectarem fortemente as vidas e os meios de subsistência. O calor alimenta as secas e os incêndios florestais, as tempestades e as inundações repentinas, e as regiões e cidades europeias continuam a não estar preparadas”, afirmou Eleni Myrivili, directora global para o calor da agência das Nações Unidas para a habitação e as cidades, citada num comunicado recente da Comissão Europeia.

Friederike Otto acredita que os fenómenos extremos de 2024 ilustram não só uma recusa de adaptação, mas também “falta de visão”, a começar pelas cheias na Europa. “Não precisamos apenas de previsões meteorológicas ou avisos. Precisamos de simulacros. Temos de praticar a sobrevivência nos locais onde podem ocorrer grandes inundações, e elas podem agora ocorrer em toda a parte”, afirma a cientista à Reuters.

As cidades mundiais não estão preparadas em termos de adaptação, nem os países mais poluidores estão a fazer o trabalho de casa no domínio da mitigação. Mitigar, no contexto da crise climática, significa reduzir emissões de gases de efeito de estufa. O problema é que, em vez de diminuir, estamos a aumentar a quantidade de carbono que lançamos para a atmosfera.

As emissões atingiram em 2023 um pico histórico de 57,1 mil milhões de toneladas, o que significa um aumento de 1,2% face ao ano anterior. Estamos a andar para trás, recuando ao ritmo de crescimento pré-pandemia. Se mantivermos o ritmo actual, a Terra pode aquecer até 3,1 graus Celsius em 2100, alerta um relatório das Nações Unidas publicado em Outubro.

As consequências trágicas do calor extremo já são visíveis. “O número de dias em que se começa a ultrapassar os limites fisiológicos da sobrevivência humana [está a aumentar]”, diz Andrew Pershing. O especialista da Climate Central sublinha ainda a desigualdade que há na crise climática, uma vez que “as pessoas que estão a sucumbir a mortes relacionadas com o calor não são os milionários e os bilionários”.

Em África, quase 93% da força laboral enfrenta calor extremo. Na Península Arábica, são mais de 83% dos trabalhadores. Entre 16 e 24 de Junho deste ano, mais de 60% da população mundial esteve exposta ao calor extremo alimentado pela crise climática. Esse total inclui 619 milhões de habitantes da Índia, onde durante o Verão mais de 40.000 pessoas sofreram de insolação e 100 chegaram mesmo a sucumbir às altas temperaturas.

Cimeiras decepcionantes

Há três décadas que as Nações Unidas envidam esforços para que os países abracem uma estratégia concertada eficaz, uma acção conjunta que permita a redução drástica e urgente de emissões. Já foram organizadas 29 cimeiras do clima, mas os progressos são demasiado tímidos perante as perdas que já estamos a enfrentar em termos humanos, patrimoniais e de biodiversidade. Estima-se que, sem acção climática, uma em cada 20 espécies da Terra pode estar em risco em 2100. Os prejuízos económicos também são gigantescos e, de algum modo, dão-nos uma ideia de quanto custa a inacção climática.

A Cimeira do Clima de 2024 (COP29), que decorreu em Novembro em Bacu, capital do Azerbaijão, culminou num acordo que deixou a maioria descontente e que foi classificado como pouco ambicioso por muitos países. Após dias de negociação – e quase 30 horas de atraso –, adoptou-se uma meta financeira global de 300 mil milhões de dólares por ano, a ser alcançada até 2035, para apoiar os países em desenvolvimento a enfrentar os desafios climáticos. As nações que poderão receber esse apoio consideram que tal montante não passa de meras migalhas face ao financiamento climático que é, de facto, necessário.

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Vista aérea tirada da aldeia turística inundada de Venek, às margens do rio Danúbio, no noroeste da Hungria, junto à fronteira com a Eslováquia, a 17 de Setembro de 2024 EPA/GERGELY JANOSSY HUNGRIA OUT

“Os países ricos discutem nestas conferências o financiamento de soluções engenhosas que não são aplicáveis já na vida real nos países do Sul, como o hidrogénio. Precisamos é de financiamento para lidar com o que está a acontecer”, afirmava ao PÚBLICO uma jovem paquistanesa que se manifestava em Bacu, à margem da COP29.

Já a Cimeira da Biodiversidade deste ano (COP16), que teve lugar na cidade colombiana de Cali, teve um desfecho mais anódino. O plenário de encerramento, no início de Novembro, foi interrompido sem que se chegasse a qualquer decisão sobre o financiamento ou a monitorização das metas de conservação da natureza. A suspensão inédita, que se deveu à falta de quórum, deixa decisões importantes “penduradas” até à cimeira do próximo ano.

A conferência das Nações Unidas contra a desertificação, organizada este mês em Riad, na Arábia Saudita, teve um desfecho semelhante ao da COP16: não chegou a lugar nenhum. Os negociadores mundiais não conseguiram elaborar um consenso para lidar globalmente com a seca, e muito menos um protocolo vinculativo. Estima-se que a seca extrema afectou 48% dos solos globais em 2023 – o que significa que, apesar de metade do planeta sofrer deste mal, não fomos capazes de chegar a um acordo para o combater.

Os falhanços de 2024 no que toca a negociações internacionais não terminam por aqui. Vamos entrar em 2025 sem um tratado global para reduzir a poluição por plásticos – um material de origem fóssil, e cuja produção faz girar uma crescente e lucrativa indústria petroquímica.

O Comité Intergovernamental de Negociação das Nações Unidas reuniu-se este mês em Busan, na Coreia do Sul, para elaborar um acordo juridicamente vinculativo sobre os plásticos, mas não chegou a um consenso. Houve um adiamento, uma vez que um pequeno número de países produtores de petroquímicos, como a Arábia Saudita, manifestou-se contra a ideia de redução dos plásticos e recorreu a tácticas processuais para postergar as negociações.

O dinheiro parece ser o principal entrave aos acordos globais sobre questões que estão a degradar os ecossistemas dos quais dependemos, ou mesmo a tornar intolerável a vida para muitos seres vivos à superfície da Terra. Por um lado, há os países que lucram com os combustíveis fósseis e não querem deixar de o fazer; por outro, há as nações que, apesar de serem poluidoras, ou apenas mais prósperas, não estão dispostas a abrir os cordões à bolsa. E sem financiamento climático não é possível garantir medidas de acção climática ou adaptação a países vulneráveis que, apesar de pouco terem contribuído para esta crise do clima, já estão a sofrer com os fenómenos extremos.

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Fumo dos vastos incêndios que afectaram este ano o Pantanal, a maior zona húmida do mundo, em Corumbá, no estado de Mato Grosso do Sul, Brasil REUTERS/Ueslei Marcelino

“As empresas de petróleo e gás – amparadas por muitos governos e pelo sistema financeiro global – continuam a reforçar a dependência mundial dos combustíveis fósseis. Estes investimentos perversos, juntamente com o grave fracasso em fazer as mudanças estruturais necessárias no sector da energia, estão a comprometer as economias de que depende a subsistência das pessoas e a deixar em risco a saúde e a sobrevivência de milhões de pessoas”, afirmava Stella Hartinger, co-autora e directora do Lancet Countdown para a América Latina, por ocasião da publicação do relatório homónimo em Outubro.

Este ano chega ao fim, portanto, acumulando recordes climáticos, fenómenos extremos e cimeiras decepcionantes. Contudo, 2025 está ao virar da esquina, e reserva novas oportunidades de negociação internacional na área climática. Cientistas, activistas, decisores políticos e ambientalistas já estão com os olhos postos na COP30, que terá lugar em Belém, no Brasil. Antes disso, até Fevereiro do próximo ano, líderes políticos de todo o mundo devem fazer as suas promessas climáticas – que se querem o mais ambiciosas possível.

“Os próximos meses serão decisivos, à medida que se aproxima o prazo para os países assumirem novos compromissos climáticos (NDC, na sigla em inglês) que estabelecem os objectivos de emissões para 2035”, afirmava Taryn Fransen, directora de Ciência, Investigação e Dados do World Resources Institute, por ocasião da publicação em Outubro de um relatório das Nações Unidas sobre emissões. No entanto, conclui a responsável, “sem mudanças significativas e sistémicas, e sem um maior apoio financeiro aos países em desenvolvimento”, a possibilidade de assegurar “um futuro habitável” será cada vez menor.