Dos baús de família da Palestina saem fotografias contra o esquecimento

O livro Contra o Esquecimento. Uma Memória Fotográfica da Palestina Antes da Nakba, 1889-1948, reeditado recentemente, reúne fotografias, algumas inéditas, da Palestina anterior a Israel.

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Mulheres cristãs e judias trabalham lado a lado nos serviços aduaneiros de Haifa, na Palestina, entre 1940 e 1942 DR
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“Enquanto a ocupação [israelita] continuar a produzir refugiados, temos de continuar a lembrar”, escreve Sandra Barrilaro nas páginas do livro Contra o Esquecimento. Uma Memória Fotográfica da Palestina Antes da Nakba, 1889-1948. Citando o poeta palestiniano Mahmoud Darwish, a fotógrafa espanhola justifica: “Porque conhecemos o medo que os invasores têm das memórias”. Foi para desmontar o slogan da propaganda sionista “uma terra sem gente para uma gente sem terra” que Barrilaro, em conjunto com a jornalista Teresa Aranguren, decidiu, em 2014, pôr mãos à obra e reunir num só documento um retrato da Palestina antes da Nakba — “a catástrofe”, acontecimento que a ONU descreve como “desalojamento e expropriação maciços dos palestinianos durante a guerra Israelo-Árabe de 1948”, que deflagrou após a fundação do Estado de Israel.

Antes de 1948, sob mandato britânico, a Palestina era “mais do que uma sociedade organizada”, refere Sandra Barrilaro, em entrevista ao P3. “Tinha câmaras de comércio, juntas de freguesia, estações de rádio, hospitais, polícia, correios”, enumera. “Estavam de tal forma organizados e coesos que, em 1936, conseguiram organizar e manter uma greve geral de seis meses.” Revelar os factos através da reunião de prova documental, neste caso de fotografias, é a ideia que está na base deste livro editado originalmente em Dezembro de 2015, em espanhol, e reeditado em 2024, em inglês — o livro foi premiado recentemente pela Palestine Book Awards, um marco importante tendo em conta que está em curso o que a Amnistia Internacional considera tratar-se do genocídio israelita contra o povo palestiniano na Faixa de Gaza. “O livro está a despertar muitíssimo interesse neste período porque muita gente está a descobrir agora a história da Palestina, está a compreender agora, pela primeira vez, o que é a ocupação israelita.”

As fotografias reunidas no livro Contra o Esquecimento, que tem prefácio do activista palestiniano Mohammed El-Kurd, têm várias origens. Inicialmente, Sandra e Teresa lançaram um repto junto da comunidade palestiniana a residir em Espanha. “Pensávamos que as pessoas poderiam ter fotografias em sua posse que fossem anteriores a 1948. Enviei e-mails, inocentemente, a explicar como deveriam fazer a digitalização dessas fotografias e enviar-me. Dei-me conta, claro, que tratando-se de refugiados, não poderiam ter fotografias. É o que acontece quando se é expulso de casa, de uma terra: salva-se o pouco que se pode.” A fotografia era, antes de 1948, um luxo. “Nem toda a gente podia tirar uma fotografia e, podendo, essa seria feita apenas em ocasiões especiais.” O processo foi pouco frutífero, pelo que Sandra e Teresa sentiram necessidade de adoptar uma nova abordagem.

Mulher de pijama deitada na cama, 1930's DR
Entre as fotografias do álbum da família Midawar, há vários retratos de Alexia Khoury que datam de 1930 DR
Fotografias tiradas por Amal Jaber, um professor da Saint Gabriel School, em Haifa, antes de 1948 DR - Amal Jaber
Grupo de amigos num piquenique, em Haifa, 1942 DR
Amigos num passeio ao Mar da Galileia, 1940–1942 DR
Mulheres posam num carro. Do álbum da família Bahu, Haifa, 1942 DR
O álbum da família al-Farra DR
A sala de cirurgias do Hospital de Hebron, 17 de Agosto de 1944 Library of Congress
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Mulher de pijama deitada na cama, 1930's DR

“Uma amiga palestiniana de Haifa falou-me de um professor Mansour”, recorda Barrilaro. “Há anos, décadas, que ele se dedicava à recolha de testemunhos orais e de fotografias de palestinianos. Escrevi-lhe. É um homem maravilhoso. Entusiasmou-se imediatamente e disse que sim, que colaboraria com o projecto.” A primeira fotografia que o historiador e académico Johnny Mansour enviou a Sandra Barrilaro descrevia um grupo de mulheres, cristãs e judias, a trabalharem juntas na alfândega de Haifa, em 1942. “Eu e a Teresa viajámos até Haifa, estivemos com o professor Mansour uns dias. As famílias locais, que se foram apercebendo da nossa presença e do que pretendíamos fazer, foram trazendo fotografias. Foi algo muito bonito.”

A dupla espanhola esteve também em Belém, Ramallah, Jerusalém. “Na Cisjordânia, quando lá estivemos, havia ataques [israelitas] todos os dias”, recorda Sandra. “Em Ramallah, tentámos aceder aos arquivos da agência noticiosa WAFA; mas na noite anterior, justamente, o exército israelita tinha matado o irmão da arquivista, um adolescente.” Recentemente, Sandra tem-se debruçado sobre o tema dos arquivos de fotógrafos e estúdios profissionais de fotografia roubados por Israel. “É um comportamento clássico de potência ocupante o roubo de fotografias, de documentos, com o objectivo de eliminar vestígios históricos.”

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Engenheiros britânicos diante dos destroços de residências destruídas por dinamite, em Jafa, durante os protestos árabes no Verão de 1936 Library of Congress

Se as fotografias inéditas dos álbuns familiares que Barrilaro e Aranguren recolheram durante a viagem, em 2015, são “o coração do livro”, ao mesmo tempo estavam longe de representar todo o território e todo um período histórico. “Não davam uma imagem global”, explica a fotógrafa. Foi necessário procurar matéria-prima noutros arquivos. “O facto de termos feito tudo sem uma fonte de financiamento externo — todos trabalhámos gratuitamente — implicou não podermos incluir imagens cujos direitos teriam de ser pagos. Assim, encontrámos na biblioteca do Congresso Americano a colecção de Eric and Edith Matson, que contém mais de 20 mil negativos que dizem respeito ao período temporal que pretendíamos ver retratado.”

Sandra passou “semanas e semanas” imersa na vastidão desse arquivo, cujo conteúdo já foi parcialmente revelado no P3, em 2023, que traça o retrato da convulsão social e política no território durante o mandato britânico. “O arquivo é fantástico, mas não está bem organizado. Procurava, por exemplo, pela palavra ‘beduínos’ e apareciam 20 mil resultados.” O livro inclui também imagens do arquivo da UNRWA, da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo, que presta apoio à população palestiniana desde a sua fundação, em 1948, o ano da Nakba.

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Páginas do livro "Contra o Esquecimento. Uma Memória Fotográfica da Palestina Antes da Nakba, 1889-1948"

O livro abre com a lista das 418 aldeias palestinianas destruídas entre 1948 e 40 — e não é por acaso. “O objectivo de Israel sempre foi anexar mais território”, enfatiza Sandra, que, em 2016, em conjunto com mais 12 mulheres de várias nacionalidades, realizou, a bordo da embarcação Zaytouna-Oliva, uma travessia até Gaza, num protesto contra o cerco israelita ao território palestiniano que está em curso desde 2007. “O que se passa é que agora isso se tornou mais evidente. As pessoas não estavam muito a par do que acontecia naquela região, mas agora o mundo todo sabe, e os nossos governos também. O comportamento dos governos ocidentais escandaliza-me, envergonha-me. Não impuseram, até hoje, nenhuma sanção a Israel, nenhum embargo de venda de armas. Mantém-se como sócio preferencial da União Europeia, mesmo apesar dos milhares e milhares de mortos em Gaza e no Líbano.”

Sandra “contribui como pode”, diante da tragédia que se desenrola em Gaza. “Tenho em curso uma campanha de crowdfunding para retirar de lá uma família em dificuldades. As receitas que eu obtenho do livro são direccionadas para essa campanha.” O seu maior contributo é, no entanto, o da luta contra o apagamento da história e da cultura palestinianas. “É o meu ‘grão de areia’ contra o esquecimento.”

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