As perdas da biodiversidade custam-nos todos os anos um valor igual ao PIB dos EUA
As crises globais da biodiversidade, clima, água, alimentação e saúde têm de ser resolvidas em conjunto, apela relatório internacional do IPBES, senão o fracasso é quase garantido.
Elsa nasceu em 1974. Luís nasceu em 1994. Ela tem 50 anos, ele 30. Durante as suas vidas, o mundo foi perdendo espécies de animais, plantas e outras formas de vida aceleradamente, a um ritmo de 2% a 6% por década. Desde que Elsa nasceu, perderam-se entre 12% a 36% das espécies da Terra. E faz muita diferença consoante o sítio do planeta: mais de metade da população mundial vive hoje em áreas onde se está a sentir o maior impacto do declínio da biodiversidade – que não é algo que acontece no vácuo. Reduz-se a água disponível, a quantidade e variedade de alimentos e a saúde da população é afectada.
Mais de metade do Produto Interno Bruto (PIB) mundial – equivalente a 58 biliões de dólares de actividade económica (55 biliões de euros, 55 milhões de milhões) – depende da natureza. Mas o que acontece é que quando há decisões políticas e económicas a tomar, os benefícios da natureza têm sido ignorados, e dá-se primazia aos ganhos financeiros de curto prazo, lê-se no relatório Nexus, produzido pela Plataforma Intergovernamental sobre a Biodiversidade e os Serviços dos Ecossistemas (IPBES, na sigla em inglês), que é o grupo internacional de peritos que colige o consenso científico para a área da biodiversidade, tal como o IPCC faz para as alterações climáticas.
Viramos as costas aos custos para a biodiversidade, a água, a saúde humana, o clima. As “externalidades”, ou seja, os custos que não são considerados no processo decisório nos sectores da agricultura, das pescas, dos combustíveis fósseis, que reflectem os impactos negativos da produção e do consumo na biodiversidade, nas alterações climáticas, na água e na saúde, chegam a 25 biliões de dólares anuais (23,8 biliões de euros, vinte e três milhões e oitocentos mil milhões), o que é muito perto do valor do PIB dos Estados Unidos (27,3 biliões de dólares em 2023, segundo o Banco Mundial).
Perdas ignoradas não desaparecem
“As pressões económicas negativas sobre o mundo natural têm sido ignoradas”, explicou Pamela McElwee, da Universidade de Rutgers (Estados Unidos), uma das secretárias do Relatório de Avaliação sobre as Interligações entre a Biodiversidade, Água, Alimentação e Saúde.
Trata-se de uma análise das ligações entre cinco crises, ou cinco elementos deste nexo ou elo: perda de biodiversidade, insegurança no acesso à água e no acesso à alimentação, riscos de saúde e alterações climáticas. “Interagem, intensificam-se e crescem em cascata, de formas que tornam os esforços separados para os tentar resolver ineficazes e contraproducentes”, sintetiza um comunicado de imprensa.
É que, se escolhemos ignorar as perdas, isso não quer dizer que elas desapareçam. “Estima-se que os custos não contabilizados da forma como encaramos a actividade económica sejam de dez a 25 biliões de dólares por ano”, afirmou McElwee. Isto levando em conta os impactos sobre a biodiversidade, a água, a saúde, a produção de alimentos e as alterações climáticas.
Para além de os custos dos impactos na natureza e saúde não serem contabilizados, existem ainda subsídios públicos atribuídos a actividades económicas que têm impactos negativos na biodiversidade (cerca de 1,7 biliões de dólares anuais, 1,6 biliões de euros ou um milhão e seiscentos mil milhões). Isto são incentivos para o investimento privado em actividades económicas que causam danos directos à natureza (contabilizados em 5,3 biliões de dólares por ano ou cinco biliões de euros).
Se tudo continuar tal como está, o cenário “business as usual”, com as alterações climáticas a agravarem-se, o que os cientistas antecipam é uma evolução muito negativa para a biodiversidade, a qualidade da água e, sim, a saúde humana nas próximas décadas. O que a Elsa e o Luís viveram até agora será apenas o início da história, embora se calcule que haja um milhão de espécies em extinção.
Mas há ainda outra mensagem fundamental: se acharmos que podemos focar-nos só num problema, por exemplo resolver as alterações climáticas e esquecer os problemas da crise da biodiversidade, ou da água, o fracasso é praticamente garantido. “Um foco em tentar maximizar o resultado para apenas uma parte do nexo isolado terá provavelmente resultados negativos sobre os outros elementos do nexo”, diz o estudo.
Uma abordagem focada na alimentação, por exemplo, tem benefícios para a saúde nutricional. Mas pode ter impactos negativos sobre a água, a biodiversidade e as alterações climáticas.
Há uma grande proporção da população global que não tem acesso a uma dieta saudável: 42% dos habitantes do planeta, em 2021. Mas 50% das doenças infecciosas emergentes e reemergentes estão associadas a mudanças nos usos da terra, práticas agrícolas e actividades que penetram em habitats naturais, aumentando o contacto entre animais domésticos e selvagens e seres humanos. Além disso, 80% da água doce destina-se já à produção de comida: intensificar a produção alimentar é um aumento de pressão sobre a água, que é também um bem escasso.
“Um dos aspectos mais difíceis de definir políticas é navegar a complexidade, evitando consequências negativas involuntárias”, comentou Astrid Schomaker, secretária executiva da Convenção sobre a Diversidade Biológica (Convenção sobre a Biodiversidade) das Nações Unidas, a propósito deste relatório. Iniciam-se acções para lidar com problemas globais que afectam a biodiversidade, a disponibilidade de água, de alimentos, a saúde e o clima, sem se levar em conta as ligações que existem entre estes sistemas, reconheceu Shomaker.
O resultado pode ser de mau a catastrófico. “Estas acções resultam, inevitavelmente, em falhas e insuficiências, quando não mesmo em impactos adversos, sobre a biodiversidade e as contribuições da natureza para as pessoas”, afirmou Astrid Shomaker.
Outro mundo é possível
O relatório é produto do trabalho de 165 cientistas reconhecidos internacionalmente, durante três anos, de todas as regiões do mundo. Conclui que as acções que estão a ser postas em prática para lidar com estas crises não levam em conta toda a complexidade das interligações entre clima, saúde, alimentação, água, biodiversidade, o que produz resultados inconsistentes.
Na verdade, não é preciso muito para dizer que os resultados são inconsistentes – basta não fechar olhos e ouvidos ao que se passa no mundo. Mas o que os cientistas fazem é contabilizar o valor dos nossos fracassos, ponderar cenários para avaliar quais os que têm maiores probabilidades de sucesso.
Um outro mundo é possível, dizem-nos: sete dezenas de opções apresentadas no relatório conseguem compatibilizar os 17 objectivos do Desenvolvimento Sustentável com as 23 metas do Quadro Global para a Biodiversidade Kunming-Montreal e os objectivos de longo prazo de adaptação e mitigação das alterações climáticas do Acordo de Paris.
Exemplos de acções com impactos positivos em todos os elos da cadeia, ou no nexo das crises com que nos debatemos, são coisas como restaurar ecossistemas ricos em carbono, como florestas, solos e mangais. Ou então gerir a biodiversidade, de forma a reduzir o risco de doenças animais se espalharem para os seres humanos – como a gripe das aves. Usar soluções com base na natureza para problemas das cidades é outra proposta – como ter espaços verdes nas zonas de construção, que não só servem de refúgios para o calor, como absorvem o excesso de chuva, por exemplo. Ter dietas sustentáveis e saudáveis – onde a quantidade de carne é reduzida. Tudo isto são propostas com impactos positivos na biodiversidade, no clima, na saúde, na água, na alimentação.
Esta abordagem integrada pode ser usada para resolver problemas concretos no mundo real. Respondendo a várias crises ao mesmo tempo, é possível ter mais sucesso do que se investir apenas contra um problema, como se fosse algo isolado.
Veja-se o que foi feito no Senegal com a esquistossomose, uma doença causada por um parasita, que vive em águas contaminadas por fezes, e que além de uma infecção aguda, pode causar doença crónica, que afecta cerca de 200 milhões de pessoas em todo o mundo, especialmente em África. A Organização Mundial da Saúde estima que provoque pelo menos 11.792 mortes anuais – mas estes números devem estar muito subavaliados.
“Se forem tratadas apenas como [tendo] um problema de saúde – normalmente, com medicação –, as pessoas são reinfectadas frequentemente. Mas um projecto inovador no Senegal apresentou uma abordagem diferente: reduziu a poluição da água e removeu as plantas invasoras para diminuir o habitat dos caracóis onde se aloja o parasita que transmite a doença”, contou Pamela McElwee, da Universidade de Rutgers (Estados Unidos), uma das secretárias do relatório, citada no comunicado de imprensa.
“Isto resultou numa redução das infecções em crianças de 32%, melhorou o acesso à água potável e tornou-se uma nova fonte de rendimento para as comunidades locais”, relatou McElwee.
“As acções e as decisões não podem ficar encerradas em abordagens fechadas, resumidas a um único assunto. Temos de ir além disso, para gerir e melhorar o impacto das acções tomadas num elo da cadeia sobre os restantes elos”, contou a cientista Paula Harrison, do Centro de Ecologia e Hidrologia do Reino Unido, em Lancaster, a outra secretária do relatório.