Eva era uma leitora ávida, mas solitária. Sempre leu por prazer, mas, na altura de discutir o enredo, a escrita ou até as personagens, não tinha ninguém com quem conversar. Até que encontrou o TikTok e, "mais ou menos por acaso", fundou um clube do livro. Mas voltemos aos primeiros capítulos. Diz-se uma leitora "caótica": isto porque compra a versão física de um livro, mas também a versão digital, e vai alternando entre as duas conforme a ocasião e o local onde está a ler. Não diz que não a um bom thriller ou romance, mas a fantasia é o género literário de eleição.
Mudam-se os anos, mas o objectivo de leitura desta jovem de 28 anos de Lisboa permanece quase sempre inalterado e não é difícil atingi-lo: "Este ano decidi que queria ler mais ou menos 50 livros, mas isto é um número apenas indicativo. Não fico nervosa se não conseguir atingir essa meta, o importante é gostar do que estou a ler..." Eva e outros tantos milhares de jovens portugueses estão a inverter uma tendência que permanece inalterada há vários anos: mais de metade da população portuguesa passa um ano sem ler um único livro.
Os números mais abrangentes e recentes, do Eurostat, foram actualizados este ano, mas são referentes a 2022: revelam que 58% dos portugueses acima dos 16 anos leram zero livros durante esse ano — um valor acima da média da União Europeia (47%) — cerca de 7,5% leram entre cinco e nove livros e apenas 5% leram mais do que dez livros. Neste último grupo de "superleitores", é a faixa etária dos 25 aos 29 anos que está a puxar as estatísticas para cima: 7,7% admitem ter lido dez ou mais livros durante um ano, um valor que sobe para 12,5% se for considerado apenas o sexo feminino.
No mesmo ano, o inquérito aos rendimentos e condições de vida feito pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), que também deixa de fora os jovens abaixo dos 16 anos, chegou a números muito semelhantes. Entre os inquiridos, 58,1% referiram não ter lido um livro nos 12 meses anteriores ao inquérito, a maior parte dos quais (65,7%) por falta de interesse. Entre os 40% que leram pelo menos um livro, quase 70% leram apenas entre um e quatro livros.
Mas, apesar destes números pouco animadores, o mercado livreiro continua a crescer em Portugal, com quase 9,5 milhões de livros vendidos e mais de 9 mil editados (uma média de 35 livros por dia) nos primeiros nove meses deste ano, um aumento em relação ao mesmo período de 2022 e de 2023. Os dados são da consultora Gfk, que faz auditoria e contagem das vendas de livros ao longo do ano para a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), e confirmam uma variação de mais 6% de unidades vendidas do que no período homólogo anterior, o que perfaz um valor de mais de 135 milhões de euros (mais 9,1% do que nos mesmos meses de 2023).
E se maioria dos portugueses lê menos de cinco livros por ano, tanto Eva Cmak como Sofia Sousa, que se reencontrou com o amor de infância pelos livros nos últimos anos, podem ser consideradas "superleitoras". "Em casa, sempre me incentivaram muito a ler. Mesmo antes de aprender a ler, o meu pai lia-me ou inventava histórias para adormecer, por isso a ficção sempre me trouxe algum conforto", diz Sofia, que gravita maioritariamente em direcção à ficção e lê principalmente clássicos, romances contemporâneos e thrillers mas também autobiografias, numa média de 40 a 50 livros por ano.
"Desde que comecei a ler mais activamente que defino uma 'resolução de Ano Movo' literária, onde o desafio é ler, por exemplo, 30 ou 40 livros. Não leio para completar o desafio, é uma coisa natural que gosto de fazer, então acabo sempre por ler mais do que achava..." Sofia, de 25 anos, é livreira. Mesmo passando o dia de trabalho rodeada de livros, não abdica de ler pelo menos um capítulo antes de dormir. "É algo que faz parte da minha rotina de sono", diz.
O amor de Eva pelos livros acabou por transbordar, primeiro para o TikTok — onde publica todos os dias para os seus 12 mil seguidores — e, depois, para o clube do livro que criou há um ano com uma amiga, também leitora, que conheceu nesta rede social. "Fizemos um vídeo para o TikTok a dizer que íamos começar um clube e muitas pessoas adoraram a ideia. Criámos uma comunidade no WhatsApp, que já conta com mais de mil membros. A ideia era ser apenas online, mas ultimamente temos feito encontros presenciais e tem corrido bem", refere a jovem de 28 anos.
Todos os meses, Eva e Marta escolhem dois ou três livros para os membros do clube do livro — que, na sua maioria, são jovens entre os 20 e os 30 anos — lerem em conjunto e depois discutirem. As escolhas oscilam entre a fantasia, os romances e os thrillers, mas o subgénero romantasy (que combina elementos de romance e fantasia) também é muito popular dentro do grupo.
"Tentamos escolher livros que achamos que quase toda a gente vai gostar. Às vezes arriscamos e saímos um bocado 'fora da caixa', mas temos sempre uma opção que achamos que vai ser bem recebida. Tem sido muito gratificante porque por causa do TikTok conheci imensas pessoas, que até nem fazem vídeos mas que têm um gosto em livros parecido com o meu", explica.
Eva influencia quem assiste aos seus vídeos a ler este ou aquele livro, mas também sente que é influenciada pelo TikTok, onde, nos últimos anos, se multiplicaram os “book influencers” (os influenciadores digitais especializados em literatura). Segundo um relatório deste ano da empresa de audiências e estudos de mercado Nielsen, o BookTok está a desempenhar um "papel cada vez mais importante" no crescimento do mercado editorial e a "impulsionar as vendas", especialmente nos géneros crime, fantasia e romance.
E enquanto o mercado global enfrentou um "ambiente desafiante" neste 2024, os mercados em língua espanhola e portuguesa tiveram "um ano especialmente bom". "Países como o México (+16,1%), Espanha (+12,3%), Brasil (+9,5%) e Portugal (+9,0%) registaram um aumento global das receitas", lê-se no estudo Nielsen BookData divulgado em Outubro.
Os maiores compradores, os mais lidos
Não é, portanto, surpreendente que os jovens, a faixa etária mais presente no TikTok, estejam a liderar os hábitos de leitura nos últimos anos. Por cá, a hashtag booktokportugal, utilizada pela comunidade portuguesa para etiquetar os conteúdos sobre livros, conta já com mais de 86 mil vídeos. Alguns dos livros que constam na lista dos mais vendidos em pontos como a Fnac, tanto em língua portuguesa como em inglesa, são, como se diz na Internet, alguns dos famosos e queridos desta rede social.
É o caso de O Recluso e A Criada Está a Ver, livros da norte-americana Freida McFadden que foram os mais vendidos na Fnac em Janeiro, Junho e Julho. Também Isto Acaba Aqui, de Colleen Hoover, e A Cicatriz, de Maria Francisca Gama, foram os livros mais vendidos em Agosto e Setembro deste ano.
Em inglês, a tendência é a mesma: A Little Life, de Hanya Yanagihara, foi o livro mais vendido entre Janeiro e Abril, Fourth Wing (de Rebecca Yarros), alcançou esse feito em Maio, Shatter Me (de Tahereh Mafi) em Junho, Seven Husbands Of Evelyn Hugo (Taylor Jenkins Reid) em Agosto e Intermezzo, de Sally Rooney, entre Setembro e Novembro.
Do lado da Wook, autores consagrados, como José Rodrigues dos Santos, Isabel Allende, Valter Hugo Mãe, Richard Zimler e Gabriel García Márquez, "continuam a atrair leitores fiéis e a ser dos mais procurados" e os livros em inglês são mais populares entre os mais jovens, o que explica a predominância de títulos relacionados com o género “jovem adulto”. "Mais recentemente, temas como desenvolvimento pessoal, empreendedorismo e histórias promovidas nas redes sociais têm despertado grande interesse, especialmente entre os jovens leitores", lê-se na resposta enviada ao P3.
Editoras atentas às mudanças no mercado
Um inquérito divulgado pela APEL sobre os hábitos de leitura e compra de livros, feito este ano, também concluiu que houve uma ligeira subida na percentagem de portugueses que compraram livros em 2023, passando de 62% para 65%. Apesar de a amostra ser muito limitada (cerca de 1000 inquiridos), o inquérito a leitores concluiu que a faixa etária dos 25 aos 34 anos passou a ser a que mais compra (76%)", refere a APEL, em comunicado.
Apesar de não existirem dados que provem a influência directa do TikTok neste aumento da compra de livros (o P3 pediu-os a esta rede social, que não respondeu), para as editoras portuguesas já é notória a enorme influência das redes sociais na promoção da leitura e na recomendação de livros. E a mudança no perfil dos compradores e leitores não é de agora e também não lhes passou despercebida.
Nos últimos anos, admitem, tem existido um esforço para estar onde estes jovens estão e ir ao encontro dos seus gostos e das suas exigências: acabamentos distintos, edições especiais, um ritmo de publicação dos seus autores preferidos mais acentuado e, no geral, um compromisso maior com a publicação de livros direccionados ao público jovem adulto.
Catarina Tomé, da comunicação do grupo Porto Editora, refere mesmo que as faixas etárias mais jovens se tornaram "protagonistas no mercado editorial português". "Este fenómeno é visível em eventos como a Feira do Livro de Lisboa, onde se nota o aumento do número de jovens leitores, frequentemente em grupos, criando um sentimento de comunidade em torno das escolhas literárias. Este comportamento reflecte uma ligação mais próxima à leitura, muitas vezes amplificada pelas redes sociais, pelos clubes de leitura e pela interacção com influenciadores digitais", aponta.
Pedro Sobral, que é simultaneamente director-geral de edições no grupo LeYa e presidente da APEL, também admite que começou a existir, por parte dos editores, um "foco maior em géneros como romance, fantasia, ficção científica e literatura infanto-juvenil, que são populares entre jovens e muito falados nas redes sociais". "Houve também a procura de autores que abordam temas actuais, como diversidade, sustentabilidade e inclusão, que tendem a ressoar mais com jovens leitores e muito em voga no TikTok. Estratégias de comunicação que utilizam plataformas como Instagram, TikTok e YouTube e que são formas eficazes de atingir o público jovem são hoje instrumentos habituais nas estratégias de editores e livreiros, assim como parcerias com booktokers e bookstagrammers que alavancam depois os planos editoriais", refere o responsável.
A Saída de Emergência, por exemplo, criou um selo de autores nacionais onde publica e promove, na sua maioria, escritores também eles jovens. "São autores bastante familiarizados com estas novas formas de comunicar com os leitores, que fomentam uma proximidade com quem os lê. Também mantemos uma enorme proximidade com estes leitores, que convidamos, muitas vezes, para serem apresentadores de obras ou beta-readers, e apoiamos a criação de clubes de leitura, entre outras iniciativas", refere Cláudia Teixeira. "Acho que a grande mudança é que os jovens passaram a entender a leitura como algo cool, o que tem feito com que as comunidades e páginas das redes sociais dedicadas ao livro tenham crescido e, nalguns casos, com real impacto nas vendas", diz Cláudia Teixeira.
Inês Mourão, do grupo Presença, refere que é "essencial continuar a identificar as preferências dos leitores", a explorar "tanto tendências nacionais como internacionais" e a apoiar os influenciadores digitais de livros, que têm, segundo afirma, "desempenhado um trabalho notável na divulgação de títulos e na criação de comunidades leitoras". Também Ana Gaspar Pinto, da Infinito Particular, acredita que "se deverá continuar a apostar em títulos que representem as gerações mais novas" (como pensam, o que os preocupa,) para que este público consiga "rever-se nas histórias que são contadas e não perca o interesse na leitura".
No entanto, para manter os jovens apaixonados pelos livros e para que isto não seja uma tendência provisória é necessário, acredita Paulo Batista, diretor-executivo da Alma dos Livros, que exista uma "adaptação de todo o ecossistema", a começar pelas escolas, que devem "inovar em projectos que integrem a leitura nos currículos escolares, mas de forma criativa". "Projectos que motivem os jovens e que tornem a leitura num prazer e não numa obrigação. Também é necessário reduzir barreiras de acesso aos livros: as bibliotecas públicas podem ter um papel importante, ao garantir uma oferta diversificada, inovar tecnologicamente e criar dinâmicas que permitam criar novas experiências que complementem a leitura", aponta.
Uma das medidas mais mencionadas pelas editoras ouvidas pelo P3 seria o alargamento de programas como o cheque-livro, que poderia "democratizar o acesso aos livros" se o valor concedido fosse aumentado. Este programa foi aprovado pelo anterior Governo, mas a sua aplicação só agora se concretizou. Proposta pela APEL, que defendia a atribuição de cem euros aos jovens de 18 anos para a compra de livros, a medida ficou-se pelos 20 euros e deve beneficiar cerca de 200 mil pessoas que nasceram em 2005 e 2006. Até ao dia 1 de Dezembro foram emitidos quase 30 mil cheques-livro, dos quais 13 mil foram já utilizados, segundo divulgou a Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas.
Para Teresa Matos, directora editorial da Clube do Autor, a leitura deve ser um hábito que "acompanha as pessoas ao longo da vida, evoluindo com elas", sendo necessário continuar a estimular este gosto "em português e de autores nacionais". "Iniciativas recentes, como o cheque-livro, são passos importantes para que mais jovens possam aceder aos livros e ganhar o hábito regular da leitura. Outra possibilidade seria alargar a iniciativa a outros segmentos do mercado, como o livro infanto-juvenil e autores de língua portuguesa", sugere a responsável.
O certo é que no tempo em que demorou a ler este texto, Eva provavelmente já leu mais umas páginas da sua leitura actual (Rainha das Sombras, de Sarah J. Maas), e está mais perto do seu objectivo anual de ler 50 livros. "Não sou uma leitora rápida, sou tranquila com as minhas leituras. Às vezes leio dois livros em dois dias, às vezes leio um livro em três semanas". Entre trabalho, na área do marketing, e leituras, ainda arranja tempo para se dedicar ao clube do livro que continua a crescer e onde todos os dias há mensagens trocadas sobre leituras actuais, listas de desejos e recentes aquisições (de livros, claro). "A organização dos eventos dá um bocadinho de trabalho, mas é gratificante no final, por isso é para continuar."