Todo o país ganha com o acesso dos migrantes à saúde

Pensei que a pandemia tinha demonstrado que, em Saúde e, sobretudo, em Saúde Pública, “ninguém está a salvo, até que todos estejam a salvo”.

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Desde que me demiti de ministra da Saúde, evitei comentar as escolhas políticas na Saúde e a vida no Serviço Nacional de Saúde (SNS) — mas o que está em causa é demasiado grave para poder ficar em silêncio.

Na semana passada, o PSD e o CDS apresentaram um projeto de alteração da Lei de Bases da Saúde que, face à atual composição da Assembleia da República, corre o sério risco de ser aprovado. Trata-se de uma modificação da Base 21 da Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, que, na definição de beneficiários do SNS, inclui “migrantes com ou sem a respetiva situação legalizada, nos termos do regime jurídico aplicável.” O objetivo é eliminar esta menção.

Na exposição de motivos, os proponentes usam o valor constitucional do SNS e as suas conquistas para instilarem a tese de que “o recente fenómeno da utilização do SNS por parte de estrangeiros não residentes em Portugal e que se deslocam para o nosso país, por vezes até em contexto de redes ilegais, com o propósito único ou, pelo menos, principal, de acederem gratuitamente a cuidados e serviços de saúde ou a tratamentos médicos assegurados aos utentes do SNS”, coloca em risco a sua sobrevivência. Assumem que “mesmo não sendo a dimensão da referida realidade ainda cabalmente conhecida”, ela tem “consequências negativas (...) para a acessibilidade dos utentes do SNS e as condições de trabalho dos seus profissionais, bem como para o próprio erário público.” Para concluírem o que, afinal, lhes interessa: “Não se exclui que esta procura indevida do SNS possa estar a ser potenciada pela atual Lei de Bases da Saúde” (...) “aprovada há cinco anos, (...), já no estertor da chamada 'geringonça'”. E para, depois, rematarem afirmando que, porque são “partidos moderados”, nunca deixarão de “assegurar a prestação de cuidados de saúde urgentes e vitais”.

Sei que muitos olham para o acesso dos imigrantes aos cuidados de saúde através da lente da sua experiência de constrangimentos no acesso. E que há quem considere que as soluções para os problemas dos outros competem com as soluções para os nossos próprios problemas. Pessoalmente, pensei que a pandemia tinha demonstrado que, em Saúde e, sobretudo, em Saúde Pública, “ninguém está a salvo, até que todos estejam a salvo”. As vacinas não são “cuidados urgentes e vitais”; logo, se a alteração que se pretende introduzir à Lei de Bases da Saúde estivesse em vigor aquando da campanha contra a covid-19, tudo teria sido diferente.

As doenças infetocontagiosas, como a tuberculose e o sarampo, são, precisamente, o melhor exemplo da razão pela qual todo o país ganha com o acesso de todos, incluindo dos migrantes, qualquer que seja a sua situação, ao SNS. Mas as doenças não-transmissíveis também o são, se recordarmos as perdas de produtividade que acarretam, algo que se sabe da história dos modelos de sistemas de saúde, visto que não foi uma razão generosa, mas o pragmatismo, que levou à sua organização.

Claro que isto nada tem a ver com a “utilização do SNS por parte de estrangeiros não residentes em Portugal e que se deslocam para o nosso país, por vezes até em contexto de redes ilegais, com o propósito único ou, pelo menos, principal, de acederem gratuitamente a cuidados de saúde”. Um problema sobre o qual pouco sabemos e a que a presente proposta de alteração não responde, na medida em que ela nada tem a ver com a Lei de Bases da Saúde. Porque não é a Lei de Bases da Saúde que inibe a repressão das redes ilegais. Nem impede a gestão de fluxos de doentes e cobrança de cuidados aos sistemas de saúde responsáveis (aliás, hoje, a utilização do SNS por estrangeiros já é objeto de faturação, nos termos da lei).

O que esta proposta de alteração representa é, portanto, e apenas, o triunfo do populismo sobre as forças políticas de centro-direita, sendo mais um exemplo do plano inclinado em que se encontra a democracia portuguesa. E é por isso que não é possível guardar silêncio. Não são só os migrantes em situação ilegal que estão em risco; somos mesmo todos nós.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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