Quando o popular filme Erin Brockovich chega ao fim, a personagem Donna Jensen ganha cinco milhões de dólares da Pacific Gas and Electric Company (PG&E), parte de um acordo legal de 333 milhões de dólares (316,6 milhões de euros) ao qual a empresa chegou com a cidade de Hinkley em 1996, depois de ter sido acusada de contaminar as águas subterrâneas durante anos, e causar múltiplas doenças aos habitantes.
O que o filme não mostra é o que aconteceu a seguir.
Na vida real, Roberta Walker, a mulher em quem a personagem de Jensen se baseou, disse que recebeu menos de um milhão de dólares do acordo legal. Após décadas a viver em Hinkley, na região do deserto do Mojave, na Califórnia, acreditava que a água contaminada a estava a deixar, a ela e à sua família, doentes. Por isso, mudou-se, tal como centenas de outros residentes de Hinkley que temiam os efeitos de uma contaminação contínua com crómio.
Roberta Walker contou ter sido submetida a cinco cirurgias mamárias e três ao estômago, e que muitos membros da sua família lutam com problemas de saúde.
Continua a detectar-se um nível elevado de crómio hexavalente (crómio 6), o produto químico perigoso que a PG&E despejou nas águas locais durante mais de uma década, por ser um supressor barato e eficaz da ferrugem nas canalizações, de acordo com relatórios públicos. Os compostos de crómio 6 são carcinogénicos e genotóxicos (danificam a informação genética das nossas células e provocam mutações do ADN, o que pode dar origem a cancros).
“Quando se vê o filme [de 2000], toda a gente pensa que Hinkley foi indemnizada e salva. Mas, na realidade, foi só o princípio da sua queda”, disse John Turner, de 62 anos, que cresceu em Hinkley e é um dos poucos nativos que ainda ali vivem.
A presença persistente de crómio 6 em Hinkley ilustra como é difícil limpar água potável contaminada. Mesmo no caso retratado num filme premiado com a actriz Julia Roberts, que concentrou os holofotes nacionais e internacionais naquela comunidade.
Persistem em todo o país processos de limpeza para crises de contaminação da água que duram há décadas: o derrame do rio Cuyahoga em 1969, no Ohio, que desencadeou a formação da Agência de Protecção Ambiental em 1970, ainda tem projectos de restauro em curso. Até a cidade de Flint, no Michigan, cuja crise de contaminação da água há uma década trouxe de novo este tema para a ribalta, foi considerada em incumprimento por um tribunal federal este ano, por não cumprir as suas próprias metas de substituição da canalização de chumbo.
Prazo até 2032 para a limpeza
Em Hinkley, verificou-se que a água de nove dos 44 poços testados este ano como parte dos esforços de limpeza exigidos pela Califórnia à PG&E apresentava níveis de crómio cinco vezes superiores ao máximo legal do estado e 2500 vezes superiores ao que o estado considera seguro para consumo público.
O conselho regional de água, um organismo estadual, deu à empresa até 2032 para reduzir o conteúdo químico da água para os níveis legais – 36 anos desde o processo relatado pelo filme Erin Brockovich e 80 anos desde que a substância tóxica foi despejada pela primeira vez no solo pela PG&E, a maior concessionária de serviços de água e electricidade do estado da Califórnia.
Especialistas, advogados e residentes locais disseram ao Washington Post que o longo prazo dado para a limpeza decorre em parte da dificuldade logística de remover uma substância tóxica que circula há anos nas águas subterrâneas. Mas também se explica porque o esforço tem sido em grande parte realizado por um dos departamentos regionais de controlo da qualidade da água na Califórnia, que está a tentar regular a actividade de uma empresa gigante.
Este ano, a PG&E apresentou argumentação a defender a redução das suas obrigações de limpeza. A decisão caberá ao Conselho Regional de Controlo da Qualidade da Água de Lahontan [trata-se de um dos nove conselhos regionais que têm a responsabilidade de garantir a qualidade da água no estado da Califórnia].
“A solução vai demorar centenas de anos”, disse Gary Praglin, advogado que representou os residentes no caso contra a PG&E na década de 1990. “Temos aquilo a que chamarei empresas rápidas e reguladores lentos… E não é só em Hinkley.”
Em comunicado, a PG&E afirmou que o que falta dos trabalhos de limpeza irá decorrer “nas próximas décadas”, alegando: “A empresa continua a aplicar a melhor ciência e conhecimento aos nossos programas em Hinkley de uma forma que proteja a saúde humana e o ambiente.”
Uma cidade a morrer
Nas décadas que se seguiram ao acordo legal histórico que pôs termo ao processo movido pelos habitantes de Hinkley, que fica a cerca de 190 km a nordeste de Los Angeles, a cidade onde viviam mais de 2000 pessoas encolheu para menos de 900. Os correios, as lojas, a estação de gasolina, a escola, todos fecharam.
Nesta cidade do condado de San Bernardino, as poucas centenas de residentes estão agora espalhadas, aqui e ali, pelo deserto. Alguns têm grandes sistemas de filtragem de água nos seus quintais, doados pela PG&E, mas são raramente utilizados, porque a manutenção é dispendiosa.
“Não avançámos nada”, disse a verdadeira Erin Brockovich em entrevista. “Não sei se houve uma vitória para algum de nós.”
Fundada em 1905, a PG&E é uma das maiores concessionárias de energia dos Estados Unidos. Fornece gás natural e electricidade numa área superior a 180 mil km2 no Norte e Centro da Califórnia. Tem sido objecto de processos judiciais no valor de muitos milhares de milhões de dólares relacionados com incêndios florestais na Califórnia, incluindo o mortífero Camp Fire, na cidade de Paradise.
A investigação feita pelas autoridades estaduais concluiu que uma velha e desactualizada linha eléctrica da PG&E se tinha avariado e provocado o incêndio florestal em 2018 que matou pelo menos 85 pessoas e destruiu 14.000 casas. A empresa pediu falência em 2019, alegando a acumulação de acções judiciais.
Um filme de terror em câmara lenta
Mas a crise em Hinkley começou em 1952 – 18 anos antes da criação da Agência de Protecção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos.
A PG&E mantém uma estação de compressão de gás em Hinkley, com torres de refrigeração que reduzem a temperatura do gás quente que viaja em tubagens do Texas até à Califórnia. Nesse ano, a PG&E começou a adicionar crómio-6 à água que arrefecia o gás; este produto químico era uma forma barata de evitar que a água enferrujasse e corroesse os canos.
A PG&E reconheceu ter despejado centenas de milhões de litros de águas residuais tóxicas em grandes lagoas de retenção, que não tinham revestimento. A água com crómio-6 penetrou nas águas subterrâneas e depois foi drenada para os poços privados dos residentes, cuja água era utilizada para beber. Isto é grave: os cientistas compreenderam que respirar ou beber crómio-6 durante períodos prolongados tem um risco acrescido de cancro, bem como danos nos rins, estômago e fígado.
Os moradores questionaram-se durante anos sobre se havia algum problema com a água. Erin Brockovich recorda-se de ter visto árvores doentes a segregar uma substância branca com produtos químicos que tinham sido absorvidos das águas subterrâneas contaminadas.
Os Walker – Roberta e o marido, Greg – tinham vários animais na sua quinta a morrer inexplicavelmente, recordou ela.
Em 1987, a PG&E informou o estado da Califórnia de que os níveis de crómio-6 num dos seus poços violavam o que era, na altura, o limite legal do estado, 50 partes por mil milhões. Esta admissão autorizou o conselho de água a emitir uma ordem para reduzir o nível de contaminação da água. O conselho foi impondo requisitos ainda mais rigorosos ao longo do tempo, à medida que o âmbito do problema se foi tornando mais claro, disseram os especialistas que acompanharam o seu trabalho.
Houve indícios iniciais de que a PG&E reconheceu haver problemas. De acordo com os habitantes locais, os trabalhadores da PG&E começaram a aparecer nas casas dos residentes num raio de um quilómetro e meio das estações de compressão a oferecer água engarrafada. Começaram a oferecer-se para comprar casas de dezenas de moradores locais.
Roberta Walker vivia numa dessas casas e começou a testar até onde iria a PG&E. Ela disse que pedia cada vez mais garrafas por semana, até que a empresa enchesse toda a sua piscina com água engarrafada.
A 10 de Fevereiro de 1993, Walker registou no seu diário que a monitorização que a PG&E estava a fazer mesmo atrás da sua casa tinha um nível de crómio-6 de 4900 partes por mil milhões (ppmm). O limite legal do estado hoje em dia é de 10 ppmm.
Depois de rejeitar as ofertas da PG&E para comprar a sua casa, que ela tinha adquirido por 20 mil dólares, Walker disse à empresa em 1993 que podiam comprar a propriedade por 200 mil dólares. Ficou chocada quando eles aceitaram. “Era como se alguém estivesse a ver um filme de terror e soubesse o que estava a acontecer, mas as pessoas no filme não”, disse o marido, Greg.
Walker reuniu a papelada e enviou-a para o escritório de advogados Masry & Vititoe, onde os seus ficheiros foram parar à secretária de uma mãe solteira que trabalhava como escriturária – Erin Brockovich.
Brockovich disse que uma das primeiras coisas que fez foi examinar os processos médicos de Walker e dos seus filhos. “Tudo estava fora do normal”, disse Brockovich, de 61 anos. “Sempre que acontece um destes desastres ambientais, há uma mãe irritada que se revolta. Começando por Roberta Walker. Sempre."
Quando Brockovich e outros advogados foram bater a outras portas em Hinkley na década de 1990, recordam-se de ter encontrado famílias com várias gerações de histórias de tumores e diagnósticos de cancro, que iam desde cancro do rim e do estômago a leucemias e linfomas.
Em 1996, após uma acesa batalha judicial que se transformou em arbitragem, a PG&E concordou em pagar centenas de milhões de dólares a 650 residentes de Hinkley que afirmaram que a sua saúde era prejudicada pelo crómio presente na água.
Uma mancha tóxica
Após o acordo legal histórico e, em seguida, a atenção nacional e internacional gerada pelo filme de 2000 – com o qual a actriz Julia Roberts ganhou um Óscar, interpretando Brockovich – as autoridades estaduais começaram a examinar a PG&E mais de perto. Em breve, mais pessoas, incluindo algumas das comunidades próximas de Hinkley, disseram que também tinham sido prejudicadas pela água tóxica.
Para realizar a limpeza, a PG&E tem trabalhado para converter o crómio-6 em crómio-3, um micronutriente inofensivo. Um dos processos usados envolve o bombeamento de água cheia de etanol para o solo e outro utiliza campos de luzerna, que convertem naturalmente os elementos.
A PG&E voltou a fazer um acordo judicial em 2006, por 295 milhões de dólares (281 milhões de euros) com um novo grupo de 1100 residentes de Hinkley e de outras cidades, incluindo Kettleman Hills, onde a PG&E também tem uma estação de compressão. A empresa pediu ainda desculpa pela poluição. “Claramente, esta situação nunca deveria ter acontecido e lamentamos que tenha sucedido”, disse a empresa em comunicado, na altura.
Dois anos depois, um caso final foi resolvido por 20 milhões de dólares (19 milhões de euros), depois de mais 104 pessoas terem alegado exposição a água tóxica.
Não querer ver
Ainda assim, em 2010, o conselho local de água informou que a mancha do venenoso crómio-6 parecia estar a espalhar-se desde a ordem de limpeza anterior, dois anos antes. Ordenou que a PG&E expandisse a sua monitorização da água, o que revelou áreas contaminadas que anteriormente eram consideradas não-afectadas.
“É como se não quisessem levantar o tapete e ver toda a sujidade que estava lá por baixo, porque sabiam que isso lhes ia custar muito dinheiro”, disse Lisa Dernbach, geóloga de engenharia que trabalhou para o conselho de água de Lahontan de 1992 a 2019.
A PG&E negou ter violado qualquer lei estadual. Numa entrevista de 2010 ao jornal Los Angeles Times, um representante da PG&E disse que os novos relatos de crómio-6 poderiam ser parte da mudança natural da forma da mancha do contaminante. Declarou que seria necessária mais investigação para saber se estes níveis provinham da área contaminada ou se seriam produzidos naturalmente. A empresa, entretanto, ofereceu-se para comprar mais casas, disseram os moradores. Foram demolidas algumas habitações e os moradores viram armários, colchões e sofás atirados para o aterro local.
Em 2012, o Conselho de Água de Lahontan multou a PG&E em 3,6 milhões de dólares (3,4 milhões de euros) por não conter a propagação da mancha de poluição.
Mais de uma década depois, um estudo dos Serviços Geológicos dos EUA feito a pedido da PG&E, mas cumprindo uma ordem do conselho da água, concluiu que a empresa tinha durante anos sobrestimado a quantidade de crómio que ocorre naturalmente no solo, e ao mesmo tempo subestimou a propagação da mancha de contaminação. Os residentes esperavam que o estudo estabelecesse as bases para novos mandatos rigorosos para a empresa. Mas não parece ser assim.
Numa declaração ao The Washington Post, a empresa disse que este ano atingiu o que chamou “marco significativo” nos seus esforços de limpeza, ao remover 89% do crómio-6 presente nas águas subterrâneas. “A PG&E fez este progresso substancial ao trabalhar com agências reguladoras, em parceria com a comunidade e através de métodos inovadores e sustentáveis, incluindo o nosso sistema de tratamento e métodos agrícolas”, disse um porta-voz.
Empresa quer parar
Nos últimos anos, os níveis de crómio-6 têm vindo a diminuir, de acordo com os relatórios de monitorização de poços da PG&E.
Em Abril deste ano, a Califórnia estabeleceu um nível máximo de contaminante para o crómio-6 que é o mais rigoroso dos Estados Unidos, mas superior ao que o estudo de 2023 descobriu que ocorria naturalmente na área. No mês seguinte, a PG&E apresentou uma carta ao conselho de água a pressionar por uma meta de nove partes por milhar de milhões – significativamente mais elevado do que o valor que o estudo concluiu ser o nível natural de crómio-6 naquela área, e resvés abaixo do novo padrão legal.
A PG&E disse que qualquer coisa mais rigorosa do que a sua proposta “criaria uma abordagem insustentável com complexidade regulatória desnecessária e sem benefícios”.
Muitos moradores ficaram indignados.
“O mesmo de sempre”
Raízes e troncos de árvores pontilham agora o Community Boulevard, uma rua de Hinkley, restos de árvores cortadas pela PG&E depois de comprar o terreno. John Izbicki, que liderou o estudo independente dos Serviços Geológicos, descreveu a sua estada aqui como “a experiência muito perturbadora de ver uma cidade morrer”.
Ali perto, numa tarde recente, saladas e sanduíches da Subway foram colocadas no balcão da cozinha de uma casa em Hinkley paga pela PG&E como local para realizar reuniões sobre o processo de limpeza. Numa grande sala nas traseiras estão dezenas de cartazes de grandes dimensões com mapas e pilhas de relatórios antigos, elaborados ao longo dos anos para demonstrar os níveis de contaminação na comunidade. Nos últimos anos, os mapas mostram como a mancha está a diminuir lentamente, com os processos de limpeza que a PG&E tem vindo a pôr em prática.
Algumas dezenas de residentes foram entrando lentamente, muitos vindos de empregos em campos ou fábricas. Trazem os pratos na mão. Têm-se reunido pelo menos trimestralmente em preparação para que o conselho de água emita a sua ordem final de limpeza à PG&E.
Ouviram explicações sobre o recente pedido da PG&E para uma meta de limpeza mais branda. O conselho da água está agora a receber comentários públicos, para decidir se aceita ou não a proposta. Alguns moradores gemeram. “É o mesmo de sempre”, disse Turner.
O antigo talhante, que agora dirige o centro comunitário como voluntário, fez uma pergunta à pequena multidão: vale a pena outra luta? Um padrão abaixo do limite legal do estado seria assim tão mau? “Não estou a dizer que os deixemos levar a melhor. Mas onde paramos?”, interrogou. “Até todos terem saído daqui?”
Uma história sem fim
Roberta Walker vive agora numa casa numa colina em Barstow, onde pode ver Hinkley nas proximidades. A sua primeira habitação, onde viveu de 1976 até ser comprada em 1992, está rodeada por uma placa de propriedade privada – quatro hectares de puro deserto. Depois de a PG&E a ter comprado, os Walker construíram uma nova casa com um tecto alto em Hinkley. Então, a empresa ofereceu-se para comprar também aquela propriedade. Convencida de que Hinkley não era seguro, ela e o marido concordaram em vender e mudar-se.
Esta segunda casa em Hinkley está apenas marcada por um conjunto de degraus de pedra, aquilo que era a sua varanda antes de a empresa a demolir. Às vezes, ela ainda vai lá para se sentar e reflectir.
Ambas as filhas têm doenças auto-imunes e fibromialgia; uma já fez histerectomia e outra fará também no ano que vem. A sua mãe e o sogro morreram de cancro, disse ela, e o seu cunhado tem a doença de Hodgkin. Greg, o seu marido, tem cancro da próstata. Até os seus netos têm doenças auto-imunes, contou.
Após décadas a lutar contra a PG&E, está cansada da batalha. Já não participa nas reuniões para discutir os assuntos da cidade. “Tento viver a minha vida da melhor forma, tento ser feliz e torná-la boa, mas é difícil”, contou. "A crise da água ainda continua e não será resolvida durante a nossa vida… Acho que isto nunca vai acabar...”
Exclusivo PÚBLICO/The Washington Post