“Políticas italianas absurdas” forçam Médicos Sem Fronteiras a interromper operações de resgate no Mediterrâneo Central
Navio que resgatou 12.675 pessoas passou 160 dias detido em diferentes portos. ONG médica internacional diz-se punida por “cumprir o dever humanitário e legal de salvar vidas no mar”.
A organização internacional Médicos Sem Fronteiras concluiu que as “leis e políticas italianas tornaram impossível continuar” as suas operações de resgate no Mediterrâneo Central, “uma das rotas migratórias mais mortais do mundo”, onde mais de 31.000 pessoas morreram ou desapareceram nos últimos dez anos. Prometendo “regressar o mais rápido possível”, os MSF vão agora avaliar “o melhor modelo operacional para este ambiente desafiador”.
Apontando o dedo a “leis e políticas tão absurdas e sem sentido” do Governo de Itália, que custaram ao navio Geo Barents, no mar desde 2021, quatro sanções e 160 dias de detenções em portos nos últimos dois anos, Juan Matias Gil, coordenador de buscas e salvamento dos MSF, explica que “a capacidade de salvamento dos navios humanitários está significativamente subutilizada e é activamente prejudicada pelas autoridades italianas”.
A par das detenções, a prática de designar portos distantes para desembarcar as pessoas resgatadas “prejudicou ainda mais a capacidade do Geo Barents de salvar vidas no mar e de estar presente onde é mais necessário”, tendo passado “meio ano a navegar de e para portos distantes, em vez de prestar assistência a pessoas em perigo”.
Tudo começou com o chamado Decreto Piantedosi (conhecido pelo nome do ministro do Interior italiano, Matteo Piantedosi), aprovado em Janeiro de 2023 pelo Governo da direita radical de Giorgia Meloni. Para além de obrigar os navios a deslocar-se “sem demoras” para o porto designado, impedindo as ONG de realizar múltiplas operações de resgate (e obrigando-as a ignorar pedidos de socorro), a legislação permite às autoridades ordenar os desembarques em portos do centro e Norte de Itália – o que, segundo o Conselho da Europa, “prolonga o sofrimento” dos resgatados e “atrasa indevidamente a prestação de assistência adequada para satisfazer as suas necessidades básicas”.
Ao mesmo tempo, o decreto introduziu novas exigências de “cumprimento dos requisitos técnicos”, uma expressão propositadamente vaga que abriu caminho a “inspecções de segurança demoradas e repetidas dos navios das ONG, impedindo-as de retomar as suas operações de salvamento”, descreveu a Comissão para os Direitos Humanos do Conselho da Europa numa carta em que pediu ao Governo de Meloni que o decreto fosse retirado, logo em Fevereiro de 2023.
Nas últimas semanas, dizem os MSF, Itália “intensificou ainda mais a dureza das sanções, tornando mais fácil e mais rápido confiscar embarcações humanitárias”.
“Enquanto Estado-membro do Conselho da Europa, a Itália é obrigada a proporcionar um ambiente seguro e favorável aos defensores dos direitos humanos, incluindo as ONG que salvam vidas no mar”, sublinhou, em 2023, a organização intergovernamental que integra 47 países, incluindo todos os Estados-membros da UE.
Explicando que passou os últimos dois anos a esgotar todos os canais legais e a recorrer das sanções, os MSF lembram que obtiveram duas suspensões de ordens de detenção de 60 dias na justiça italiana, mas recordam também que apresentaram, com outras ONG, “cinco queixas individuais à Comissão Europeia, instando-a a examinar as restrições à luz da legislação da UE, sem sucesso até o momento”.
“As leis e as políticas italianas são um verdadeiro desrespeito pela vida das pessoas que atravessam o Mediterrâneo. As histórias de dezenas de milhares de sobreviventes ecoam por todo o lado no Geo Barents. Bebés deram os seus primeiros passos nestes conveses; pessoas choraram os seus familiares”, afirmou Margot Bernard, coordenadora do projecto dos MSF no comunicado divulgado nesta sexta-feira. “Quando as políticas europeias de dissuasão causam tanto sofrimento e custam tantas vidas, temos o dever de persistir em prol da humanidade.”