De produto barato a presente para estrangeiros: as conservas estão a mudar
A indústria conserveira quer deixar de ser comida para desenrascar. Para isso, vai testando receitas mais criativas e potencialmente mais sustentáveis, e aposta num dos seus activos: as suas mulheres.
Na fábrica de conservas da Portugal Norte, no centro de Matosinhos, ouve-se no chão de fábrica: “Já me puseram a fechar chocolate.” É dia de produzir sardinhas em molho teriyaki, um molho asiático castanho-escuro e adocicado, um dos sabores mais recentes da marca Porthos. Estas latas que parecem de chocolate nas mãos de operárias experientes são uma imagem do que está a acontecer na indústria conserveira, a Norte e um pouco por todo o país.
Novas receitas, design aprimorado e melhores ingredientes querem tirar as conservas do século XIX e da ideia de comida pobre. Para isso, aposta-se em equipas de inovação e conta-se com as mulheres que escolhem peixe e fecham latas há décadas.
Há muito que a comunidade piscatória conhece o peixe-agulha — apanhado nas redes com a sardinha e sem valor comercial, frito sempre foi uma maravilha barata. Por isso, as trabalhadoras da fábrica de conservas Portugal Norte pediram que se começassem a fazer latas com o peixe-agulha que vinha enganado nos cardumes de sardinha, para que os trabalhadores as comprassem a preço de custo. Assim nasceu uma das primeiras receitas da marca Briosa Gourmet, que a Portugal Norte criou em 2007 para vender uma ideia refinada de o que é uma conserva de peixe.
800 conservas diferentes
“Os meus avós são do tempo de abrir uma lata e comer com umas batatas cozidas. Hoje não é assim. Fazemos peixes fumados, como a cavala e a sardinha, peixes sem pele nem espinhas e experimentamos muito internamente. Não podemos estar parados no nosso mercado, para os clientes mais novos não acharem que isto é do tempo dos avós”, diz Rodrigo Souza, administrador e neto do fundador desta fábrica.
O seu sotaque é o de alguém criado no Norte de Portugal a ver a rede Globo e denuncia a história desta empresa. O avô emigrou para o Brasil, onde fez algum dinheiro, e, de volta a Portugal, investiu numa fábrica de conservas na Figueira da Foz. Nos anos 1960, abriu uma outra em Matosinhos, onde as condições do porto, a pesca de cerco e a mão-de-obra eram convidativas.
Essa época — além da importância das conservas nas guerras mundiais — definiu este como um produto de subsistência. Hoje, por todo o país, há uma indústria a tentar reabilitar-se aos olhos dos consumidores. Estratégia número um: diversificar a oferta. “O departamento de compras vai sinalizando peixes que possam ser mais sustentáveis de trabalhar. A própria lota de Matosinhos promove alguns peixes nesse sentido”, explica Rodrigo Souza.
Isto pode significar uma menor pressão sobre a largamente consumida sardinha e o atum e, por isso, uma opção mais sustentável — além de criativa. Segundo a Associação Nacional dos Industriais de Conservas de Peixe (ANICP), em Portugal há 32 espécies de peixe em conservas e, conjugadas com diferentes molhos e coberturas, resultam em 800 referências.
Nos últimos anos, o valor económico de peixes além do atum e das sardinhas no total do negócio das conservas também parece estar a aumentar. Em 2016, os peixes e moluscos além destes dois representavam 125 milhões de euros; em 2022 representavam 190 milhões.
No mercado há carapaus embalados por marcas como a Papa-Anzóis, do Algarve; sardinhas e atum com caril, limequat, gengibre ou perrexil-do-mar da Conserveira de Lisboa, ou peixe do rio, como carpa, lucio-perca, pela Bem Amanhado, do interior do país. Em Matosinhos, a empresa 100 Mistérios serve, através das marcas José Gourmet e ABC+, lingueirão ao natural, lulas recheadas em tinta, corvina em molho picante, peixe-galo com hortelã, salmonete com limão e tomilho.
Num sector feito de fábricas com décadas de história e presença de mercado, a 100 Mistérios fundou-se há 16 anos e tem fábrica própria há quatro. O objectivo sempre foi pensar além do que o mercado português oferece. “Percebemos que esta indústria estava cristalizada no século XIX e que tem um potencial astronómico, se introduzirmos a inovação do século XXI e criatividade”, diz Adriano Ribeiro, fundador da empresa.
Na 100 Mistérios, em Perafita, o cheiro intenso a peixe habitual nestas fábricas troca-se por cheiro a limão — é dia de produzir uma das latas de sardinhas temperadas com esta fruta. Ao lado das linhas de produção do peixe, outra sala nada habitual: uma cozinha onde hoje, numa grande panela, três trabalhadoras fazem paté com tinta de choco.
Nesta fábrica também se produz patés e conservas enriquecidos com proteína de ervilha, sob o rótulo ProTin, para o nicho de consumidores com alimentações ricas neste nutriente. Também se está a testar a conservação de pratos, como papas de sarrabulho, moelas ou caril vegetariano, que poderão ser uma opção para bares que não tenham licença de cozinha e que assim podem vender um petisco além das bebidas.
De todas as experiências feitas pela responsável de inovação e desenvolvimento, Inês Nogueira, ficam de fora os peixes que precisam de pouca cozedura, como o tamboril ou a dourada: ficam secos depois dos obrigatórios 40 minutos a 117°C.
Uma arma invisível: as trabalhadoras
Na 100 Mistérios, um elemento, porém, é comum às mais tradicionais conserveiras: as mulheres experientes, uma das razões para localizar a fábrica em Matosinhos. “Aqui há uma mão-de-obra muito especializada e 90% das nossas funcionárias já trabalhavam em conservas”, explica Dalila Silva, responsável de operações.
O mercado estrangeiro é o foco desta conserveira e representa 95% das suas vendas. “É mais fácil chegar a clientes que nunca comeram conservas e que não têm preconceitos”, continua Adriano Ribeiro, notando que em Portugal há um problema evidente para quem tenta fazer conservas com produtos de qualidade: o público escolhe tendencialmente as latas mais baratas. Por isso, estas marcas não querem estar em supermercados.
Restam as mercearias finas, as lojas especializadas, o mercado do turismo e a exportação, onde estas embalagens podem até ser um presente. “O design é essencial, é o atractivo para haver a tentação de provar. O design é o isco”, resume Adriano outra arma da 100 Mistérios.
Tal como Rodrigo Sousa, da Portugal Norte, Adriano Ribeiro frisa que nesta indústria centenária pode estar uma forma mais sustentável de comer peixe, porque “no fresco temos 20 a 30% de desperdícios” e os peixes não comerciais podem ter um alto valor nutricional.
A isto acrescente-se uma ansiada certificação da sardinha portuguesa como pesca sustentável e que poderá chegar no próximo ano. “Iria ajudar-nos muito com o mercado exterior, que procura esta certificação”, afirma Rodrigo Souza que tem na sardinha portuguesa 60 a 70% da produção da fábrica.
Quando a sardinha está no defeso, trabalham-se outros peixes na Portugal Norte, com cinco marcas no mercado. Na Briosa Gourmet, por exemplo, também há peixes e combinações tradicionais, como o atum com feijão-frade ou as sardinhas em azeite — são, no entanto, exemplares de maior qualidade e o cuidado com que são embalados é mais moroso.
As mulheres que se dedicam a esta preparação, escolhem as sardinhas intactas para esta marca e embalam-nas “ao branco”, expressão que designa os peixes embalados de barriga para cima, expondo o seu lado mais delicado e, portanto, a qualidade da sua transformação.
Além das receitas simples com ingredientes de maior qualidade, há as picas (peixe-agulha) em azeite picante, biqueirão, ou molhos apaladados. “Andávamos com uma ideia e fomos à linha de produção chamar a dona Paula Espada: ‘Ouvi dizer que sabes fazer a raia em molho pitau’. Ela fez e vimos logo que tinha potencial”, lembra Rodrigo. No embalamento, outra mulher experiente foi essencial: “A Emilinha ainda se lembrava do empapelamento e foi ela que ensinou a Helena e outras colegas mais novas”, apresenta Rodrigo ao passar pela zona onde estas duas mulheres fecham as latas em tiras de papel.
Esta técnica pouco usada nas últimas décadas parece estar de volta nas marcas que procuram evocar a artesanalidade destes produtos. É, além disto, um embalamento mais barato e que permite testar as receitas com menos risco, num mercado pouco curioso como o português.
“Este é um produto exclusivo, o melhor do mar português, mas é difícil explicar isso numa lata fechada e que não é transparente. Por isso, se as lojas quiserem apenas três latas para experimentar e ver se os clientes aceitam, vendemos as três latas. Se o público gostar, compram mais”, explica Rodrigo Souza que, no estrangeiro, viu a sua carteira de clientes crescer de 42 países a 55 por causa desta marca.
Outra forma de fazer o público ver para dentro da lata é o restaurante aberto ao público, na fábrica. Chama-se Companhia das Conservas e serve pratos como folhados recheados com raia em conserva, petingas em panko ou bao com sardinhas teriyaki — as tais que parecem chocolate. Aqui terminam também as visitas de estudo à fábrica, aquelas que os pais agradecem, porque os miúdos voltam para casa a querer comer peixe. Pelo menos, deste que tem lata.