Da nascente à foz, cientistas mapearam o fluxo das ribeiras e rios do planeta

As alterações climáticas e a actividade humana são os fenómenos que alteraram o fluxo de muitos troços de rio entre 1984 e 2018, mostra estudo que usou imagens de satélite para analisar os caudais.

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O estudo analisou 2,9 milhões de troços de rios em todo o mundo Tiago Bernardo Lopes
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A vida dos rios não é uma constante. O seu volume pode aumentar e diminuir de acordo com as estações do ano, devido a fenómenos de precipitação extrema ou por causa de temporadas sem chuva, vejam-se os caudais quase secos na Amazónia nos últimos meses. Mas ao longo das décadas, as intervenções humanas e as alterações climáticas foram tendo um papel no evoluir dos caudais dos rios, mostra agora um estudo pioneiro que fez uma avaliação dos fluxos dos rios com uma abrangência mundial.

Ao longo de 35 anos (1984-2018), a nível planetário, houve uma redução dos caudais em 44% dos troços de rios que ficam mais a jusante (perto da foz), enquanto os fluxos aumentaram em 17% dos ribeiros mais pequenos, situados junto das nascentes, mostra o trabalho publicado nesta quinta-feira, na Science.

“Descobrimos que, globalmente, os cursos de água junto à nascente tendem a ter um aumento dos seus caudais, enquanto os cursos de água perto da foz têm os fluxos reduzidos”, diz ao PÚBLICO Dongmei Feng, hidróloga da Universidade de Cincinnati, em Ohio, nos Estados Unidos, que assinou o artigo juntamente com Colin J. Gleason, da Universidade de Massachusetts, também nos Estados Unidos. “Acho que eles são o resultado combinado das alterações climáticas e dos impactos humanos.”

O trabalho feito pelo duo analisou 2,9 milhões de troços de rio em todos os continentes, menos na Antárctida. Estes troços de rios têm em conta a classificação de Strahler, ligada à matemática dos grafos, que visualiza as bacias hidrográficas como árvores. O nível um da classificação de Strahler são os primeiros caudais de água formados nas nascentes. Quando duas linhas de água de nível um se juntam, formam um troço de rio de nível dois. Por sua vez, quando duas linhas de água de nível dois se juntam, nasce um curso de água de nível três e assim sucessivamente.

A partir do nível seis, já estamos perante rios situados mais próximos da sua foz. No planeta, o tamanho máximo que uma bacia hidrográfica alcançou foi com o rio Amazonas, que atinge o nível 12 daquela classificação. Por outro lado, as estimativas apontam que 80% dos troços de água do planeta são cursos de água mais próximos das nascentes, que vão do nível um até ao três.

A importância dos caudais

Até agora, o número de análises de fluxos feitos manualmente era muito pequeno face à multiplicação de cursos de água que existem nos continentes. “Há cerca de dez a 15 mil infinitesimamente pequenas fatias em todo o mundo onde sabemos as descargas fluviais, isto a partir de milhões e milhões de quilómetros de rios”, diz Colin J. Gleason, citado num comunicado sobre o estudo da Universidade de Massachussets.

A quantidade de água que corre por aqueles milhões de quilómetros de rios e ribeiras é importante para três áreas fundamentais, refere Dongmei Feng. “Os rios mudam continuamente no espaço e no tempo”, diz, primeiro, a investigadora. “Medir e compreender o fluxo dos rios da Terra vai permitir saber quando, onde e quanta água é que está disponível nos rios, o que é uma informação importantíssima para quem faz a gestão dos recursos de água, para a beber, para a agricultura, para a indústria, mas também para o controlo da alimentação, a produção de energia, o transporte e a navegação, o planeamento e o desenvolvimento de infra-estruturas, etc.”, enumera.

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Mapa com as tendências dos caudais dos rios entre 1984 e 2018: nas zonas mais a vermelho os fluxos diminuíram e nas zonas mais a azul aumentaram Dongmei Feng e Colin Gleason/Science

Por outro lado, é preciso avaliar a evolução dos fluxos dos rios para compreender como é que estes caudais estão a ser alterados, tanto a nível de fenómenos como as alterações climáticas, como por causa da actividade humana. Só assim é possível “ajudar os decisores políticos e as comunidades a adaptarem-se às condições que estão em mudança, tal como a falta de água ou os fenómenos extremos de inundação”, aponta a especialista. Tanto Portugal, com a seca, como Espanha, com as inundações em Valência, têm exemplos bem presentes das duas situações.

Finalmente, a terceira questão trazida por Dongmei Feng está ligada ao mundo natural. “Os rios têm um papel essencial nos ecossistemas”, recorda a hidróloga. Além de formarem habitats e corredores aquáticos para muitas espécies, providenciam água e nutrientes para as planícies e para os ecossistemas costeiros, e levam ainda sedimentos para as fozes dos rios, alimentando as praias ao redor. “Ao monitorizarmos o fluxo dos rios, é possível detectar alterações naquelas funções e criar planos de adaptação sustentáveis”, diz.

O grande avanço feito por Dongmei Feng e Colin J. Gleason foi a técnica usada para analisar os fluxos dos quase três milhões de troços de rios ao longo de mais de três décadas. “Medimos a largura da superfície do rio usando imagens de satélite dos satélites Landsat e depois convertemos a largura em rácios de fluxos de rio usando um algoritmo chamado geoBAM”, explica-nos Dongmei Feng. “Ao mesmo tempo, usámos modelos numéricos para simular o fluxo do rio ao representar matematicamente os processos de transporte de água desde as encostas para os canais fluviais e através da rede fluvial”, continua a investigadora. Estes dois conjuntos de informação foram integrados para tornar a estimativa final mais exacta.

Da nascente à foz

O resultado mais imediato do estudo foi quantificar a água que, todos os dias, os rios deitaram para o oceano durante o período de estudo: 101,96 quilómetros cúbicos, ou o equivalente a 100 albufeiras de Castelo de Bode. Mas, na média anual, apesar de haver variações regionais importantes a nível global, “o caudal aumentou nas zonas das nascentes e diminui nas secções mais a jusante” dos rios, lê-se no artigo.

Apesar de o fenómeno parecer contra-intuitivo, já que o estudo identificou um aumento de 17% dos fluxos dos ribeiros mais pequenos, junto das nascentes, Dongmei Feng explica o que pode estar a ocorrer: “Em geral, é verdade que a água a jusante vem dos troços dos rios a montante, mas não apenas das nascentes. Isto significa que outros troços de rios que estão a montante (mas não directamente ligados à nascente) também contribuem, e o nosso estudo sugere que nesses troços as mudanças [no fluxo do caudal] ou são insignificantes ou há diminuições significativas.”

Por outro lado, ao longo dos troços do rio a água pode ir sendo retirada ou desviada por acção humana, o que faz com que haja menos caudal a chegar à foz. As barreiras que existem nos rios, como as barragens, podem também interferir com o caudal a nível da magnitude e variabilidade do fluxo. “Com uma barragem, a variabilidade natural de um rio pode ser suavizada ou alterada”, diz a investigadora, explicando que os modelos que usaram no estudo ainda não conseguem ter em conta este tipo de complexidade.

De qualquer modo, a variabilidade regional está patente. “Os cursos de rio de nível um a três na África central, na Europa, na Ásia central, na Ocidente dos Estados Unidos e no Sul da América do Sul foram marcados por uma redução no caudal, enquanto nas montanhas altas da Ásia, no África Ocidental e a Sul, e no Árctico a tendência do fluxo aumentou”, lê-se no artigo.

Estas mudanças podem ser significativas. “Alguns destes cursos de águas estão a mudar ao nível de cinco a dez por cento por ano. Essa é uma mudança muito, muito rápida”, avalia Colin J. Gleason. “Não tínhamos nenhuma ideia dos rácios de fluxo dos rios ou de como estavam a sofrer mudanças – quais são os rios que estão diferentes em relação àquilo que eram – agora sabemos”, conclui o investigador.