Noutro dia, ouvia Natália Correia, em 1989, na RTP, debater sobre o “iberismo” rodeada de homens. A escritora falava assertivamente e de forma imponente, como era conhecida. Enquanto ouvia aquilo, não queria que ela baixasse a voz ou deixasse de fazer certos olhares. Sentia quase um instinto de proteção. Eu, uma jovem mulher no século XXI, a sentir isto perante uma mulher de força que marcou a nossa história, lutando contra a ditadura e um mundo político liderado por homens. Senti-me ridícula. Não tive o mesmo pensamento a ouvir António Quadros ou Alexandre Manuel, que faziam parte do mesmo painel; é como se a eles lhes fosse permitido tudo.
Na crónica de Henrique Raposo, no Expresso, sobre o caso de Adriana Cardoso e Maria Castello Branco e as ameaças que as comentadoras sofrem, discordo apenas no facto de não se tratar somente de “rapazolas cheganos” ou da “masculinidade chegana” — o problema vai além disso. Não se trata de questões partidárias. O que está em causa é uma masculinidade exacerbada, que, como Maria Castello Branco afirmou no podcast Lei da Paridade, tenta diminuir a mulher, sexualizando-a e reduzindo o seu espaço. Quantas de nós já sentimos esse medo? Se fosse apenas por discordarem das nossas ideias, o temor seria muito menor.
Atualmente, ser feminista é ser alvo de insultos e colada ao estereótipo da "mulher solitária e amargurada", a "dona de gatos sem filhos". Mas isso não é verdade. O feminismo não é extremismo. E os comentários sobre as feministas revelam, precisamente, o motivo pelo qual o feminismo continua a ser necessário. Como Maria Teresa Horta disse, numa entrevista ao PÚBLICO por conta do aniversário do jornal: “Ser feminista era uma coisa aviltante. Tanto que diziam: 'Você é feminista?' E eu dizia: 'Olhe, está a querer insultar-me? Sou feminista, sim senhora, e não me está a insultar nada.'” Essas palavras continuam a ressoar com a mesma força de resistência.
Nunca estive rodeada de mulheres livres no que é ser-se mulher. Cresceram elas próprias aprisionadas e, não sabendo como desatar esse nó, desprenderam-se um pouco, mas continuaram a passá-lo. Há uma desconstrução necessária a ser feita numa sociedade patriarcal que continuamente nos ensinou que a mulher tinha de obter sempre a validação masculina, seja na relação de amizade, amorosa ou profissional. Foi essa própria validação que deteriorou a sororidade. Nos tempos dos meus avós, era difícil para os homens deixarem que as mulheres tivessem qualquer tipo de lazer, com medo do que poderiam discutir ou descobrir.
Atualmente, as relações tóxicas são alimentadas pela mesma vontade de dominação. Não se trata de um ataque aos homens. Aliás, João Maria Jonet, no livro Reflexões sobre a Liberdade: Identidades e Famílias, reflete sobre a perda de privilégios que muitos jovens homens sentem hoje, em comparação com os privilégios que os seus pais e avós tinham. Contudo, isso não justifica a perpetuação de comportamentos opressivos, mas deve servir para uma reflexão mais profunda das nossas estruturas.
Ainda há muita coisa a mudar. No Dia da Mulher, na conferência do PÚBLICO, a advogada Leonor Caldeira constatava: “Mas hoje, com muitos dos direitos das mulheres já consagrados na lei – embora não todos – o movimento feminista concentra-se sobretudo na mudança de comportamentos”.
A banalização dos crimes sexuais, a educação que preconiza total liberdade para os homens e total proteção para as mulheres… Enquanto dois irmãos, uma rapariga e um rapaz, forem ensinados que um pode sair até às 4h e ser aplaudido como “garanhão”, enquanto outra é constantemente protegida, gerando nela um medo que a acompanhará durante toda a sua vida, algo está profundamente errado.
Ouvir e ler mulheres contemporâneas é saber que há uma representação genuína. Sinto que todas aquelas que abriram o caminho para que chegássemos até aqui estariam orgulhosas de ver o legado que continuam a deixar. A todas as mulheres, no espaço público ou entre quatro paredes, que lutam diariamente para vencer as suas inseguranças, que enfrentam e ultrapassam os desafios impostos, digo: por favor, nunca se calem!