Do direito à greve da função pública

É certo que há grupos com mais condições para a mobilização, independentemente da justiça das suas causas. Mas isso significa que deverão deixar de procurar melhorar as suas condições de trabalho?

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João Miguel Tavares defendeu na sua crónica de sábado no PÚBLICO que os funcionários públicos não deviam ter direito à greve e vangloria-se de já o dizer há muito tempo. Admitindo que o cronista se estivesse a referir apenas a alguns funcionários, pois, diz, a dada altura, que esse direito devia excluir "todos os funcionários do Estado que ocupem lugares essenciais para a segurança e bem-estar dos cidadãos", parece-nos que desconhece dados importantes.

Primeiro, já existe legislação para regular os chamados "serviços mínimos" que abrange os setores que menciona: transportes, saúde e educação. Igualmente parece desconhecer que múltiplos direitos e condições de trabalho de que hoje usufruímos resultam da ação de milhares de trabalhadores que, ao longo de séculos, no mundo ocidental, se organizaram e fizeram pressão através da paralisação do seu trabalho – por via das dúvidas, consulte-se a obra do sociólogo Charles Tilly.

Os trabalhadores britânicos, por exemplo, apesar das imensas limitações impostas ao direito à greve desde Margareth Tatcher, e que se agravaram desde então apesar dos governos trabalhistas, continuam a estar mais dias em greve do que os trabalhadores portugueses, como mostram dados do Instituto Sindical Europeu.

João Miguel Tavares tem, porém, razão num aspeto. Quando diz que "a profissão que [o funcionário público] escolheu é muito diferente da de um empregado de mesa ou de um operário fabril", não podemos deixar de concordar. No setor público português ainda é possível exercer alguns direitos dos trabalhadores, porque a lei lhes permite estabilidade contratual (o que não será o caso do empregado de mesa) e as suas funções têm visibilidade para muitos cidadãos (o que não será o caso do operário fabril).

É certo que a greve surgiu em contexto industrial visando afetar diretamente o interlocutor da negociação e hoje vivemos em sociedades onde predominam os serviços, pelo que as greves lesam mais os utentes. Mas qual poderia ser a alternativa para se repor o equilíbrio de forças quando há um conflito laboral? Que estratégias podem os sindicatos usar para promover mais justiça social para os trabalhadores? É certo também que há grupos profissionais com mais condições para a mobilização do que outros, independentemente da justiça das suas causas. Isso significa que esses grupos deverão deixar de procurar melhorar as suas condições de trabalho?

João Miguel Tavares esquece-se de que aquilo que o incomoda é apenas uma pequena parte da realidade. Dados do Ministério do Trabalho mostram que há muitas mais greves, ou, melhor, avisos de greves, a atingir o país. Não estarão os jovens "brutalmente prejudicados pela pandemia" a ser mais lesados por viverem num país que teima em pagar mal aos trabalhadores, maltratar os que já estão em situação de vulnerabilidade e desincentivar a participação democrática quando ela causa mossa?

Talvez a pretensão do cronista seja ser o arauto português de mudanças que em diversos países já começaram e que, cá, apenas surgiram em forma de burburinho na imprensa. Em todo o caso, ao fim de ler a crónica de João Miguel Tavares, perguntei-me: como incentivar os estudantes a ler jornais se o debate que aí encontramos se pauta pelo “achismo”? O cronista fala na necessidade de uma cultura de "responsabilidade social", mas não vejo por que quem tem voz regular nos jornais deva ficar excluído dela.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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