O aumento de aridez dos solos está a redefinir a vida na Terra, avisa ONU

Área equivalente a metade do Brasil tornou-se zona árida em apenas 30 anos, conclui relatório da ONU, que mostra que avanço destes territórios está estreitamente ligado às alterações climáticas.

Foto
Em 2020 havia 2,3 mil milhões de pessoas a viver em zonas áridas THOMAS PETER/REUTERS
Ouça este artigo
00:00
05:56

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Nas últimas décadas o mundo tornou-se mais árido, e o aquecimento global é a principal causa para essa transformação, avança um relatório da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês). Publicado nesta segunda-feira, o documento vai alimentar as conversações durante os últimos dias da 16.ª Conferência da Convenção da UNCCD, que termina na próxima sexta-feira em Riad, na Arábia Saudita.

“Pela primeira vez, a crise da aridez foi documentada com clareza científica, revelando uma ameaça que afecta milhares de milhões de pessoas no globo”, afirma Ibrahim Thiaw, secretário executivo da UNCCD, em comunicado.

Entre 1990 e 2020, cerca de 77% da área terrestre do planeta viveu condições mais secas do que nos 30 anos anteriores, de acordo com o relatório, que reúne um manancial de informação científica. Isto significa que os solos daquela enorme área se tornaram mais áridos, um dos principais factores que contribuem para a desertificação dos solos.

A aridez é uma condição climática de longo termo em que a evapotranspiração dos terrenos é superior à precipitação que ocorre ali. “Ao contrário das secas – períodos temporários de pouca chuva –, a aridez representa uma transformação implacável e permanente”, recorda Ibrahim Thiaw. “As secas têm um fim. No entanto, quando o clima de uma região se torna mais seco, perde-se a capacidade de voltar às condições prévias. Os climas mais secos, que estão actualmente a afectar vastidões de terra em todo o globo, não vão retornar ao que eram e esta mudança está a redefinir a vida na Terra.”

Migração forçada

O aumento de aridez, durante aquele período de 30 anos, provocou o alastramento das zonas secas, representando uma área de 4,3 milhões de quilómetros, cerca de metade da área do Brasil, cobrindo actualmente 40,6% das massas de terra do planeta, excluindo a Antárctida. As zonas secas integram quatro tipos: vão de zonas secas sub-húmidas, passando por zonas semiáridas, áridas e hiperáridas, de acordo com a UNCCD.

A causa para este avanço da aridez são as alterações climáticas causadas pelas emissões antropogénicas de gases com efeito de estufa, como o dióxido de carbono e o metano. “As emissões de gases com efeito de estufa provenientes da geração de electricidade, do transporte, da indústria, da mudança de uso dos solos e outras actividades humanas aquecem o planeta e afectam as chuvas, a evaporação e a vida vegetal, criando condições que aumentam a aridez”, lê-se no comunicado da UNCCD.

Regiões como a Europa, o Mediterrâneo, a África Central, o Brasil, o Leste da Ásia e o Oeste dos Estados Unidos estão a ser particularmente atingidas por este processo. O Sudão do Sul e a Tanzânia são os países com uma maior percentagem do território a transitar para zonas secas, enquanto a China é o país com mais área territorial a transitar para aquela situação, adianta o relatório.

Em 2020, quase 31% da população 2,3 mil milhões de pessoas vivia em regiões consideradas zonas secas. Em 1990, apenas 22,5% da população se encontrava nessa situação, uma evolução que mostra que a situação piorou para muitos milhões. Estas são populações que estão, por isso, particularmente sujeitas à desertificação dos solos e que não conseguem obter alimentos através da agricultura. “A migração forçada é uma das consequências visíveis da aridez”, adianta o comunicado.

O relatório estima que já em 2040 a aridez dos solos irá provocar perdas na produção agrícola: 21 milhões de toneladas de trigo, 20 milhões de toneladas de milho e 19 milhões de toneladas de arroz. Ao mesmo tempo, os países africanos já viveram um declínio de 12% no produto interno bruto arrecadado entre 1990 e 2015 por causa da aridez.

Também o mundo natural vai sentir as consequências dessas mudanças. Regiões com uma enorme diversidade de formas de vida na África e na Ásia estão a ser alteradas devido à desertificação e à degradação do ecossistema, pondo em risco um número gigante de espécies.

“A clareza do relatório é um sinal de alerta para os responsáveis políticos: lidar com a aridez exige mais do que ciência – requer uma diversidade de perspectivas e sistemas de conhecimento”, diz Sergio Vicente-Serrano, um dos autores do relatório e investigador no Instituto Pirenaico de Ecologia, em Espanha, citado no comunicado.

Travar o avanço da aridez

O relatório apresenta um guia para enfrentar o avanço da aridez no planeta: a estratégia deverá passar por uma melhor monitorização da aridez, de modo a detectar precocemente as mudanças que estão a ocorrer, para possibilitar uma resposta adequada e atempada; uma aposta no uso sustentável da terra; o aumento da eficiência hídrica; a construção de comunidades mais resilientes; a criação de estratégias internacionais de cooperação.

Em Riad, as negociações na COP16 passam por criar um regime global para a seca apoiado em 2,5 biliões de euros (2 milhões e quinhentos mil milhões de euros) para se investir até 2030. Sem financiamento, as melhores intenções dificilmente sairão do papel. “Ao tecer conhecimento indígena local com informação de ponta, podemos criar estratégias mais fortes e inteligentes para travar o avanço da aridez, mitigando os seus impactos e prosperando num mundo que está a secar”, defende Sergio Vicente-Serrano.

Este esforço desenrola-se a par e passo com a luta contra as alterações climáticas. Os piores cenários das emissões de gases com o efeito de estufa terão um efeito devastador nas paisagens até 2100, com 23% da área terrestre a sofrer um risco de desertificação entre o moderado e o muito alto e com o número de pessoas a viver em zonas secas a duplicar, adianta o relatório.

“Este relatório não poderia ser mais oportuno. O aumento da aridez vai reconfigurar as paisagens globais, desafiando os modos de vida tradicionais e forçando as sociedades a voltar a imaginar as suas relações com a terra e a água”, diz por sua vez Andrea Toreti, outro autor do relatório e cientista do Joint Research Center da Comissão Europeia. “Tal como as alterações climáticas e a perda de biodiversidade, abordar a aridez requer uma acção internacional coordenada e um compromisso inabalável com o desenvolvimento sustentável.”