Os Quatro da Candelária retrata passado que insiste em permanecer num Brasil violento

Série fala da chacina de quatro jovens na calçada de igreja no centro do Rio. Barbárie, ocorrida em 1993, chocou o mundo, mas, no Brasil, as vidas de meninos negros continuam ceifadas pela violência.

Foto
Cena de "Os Quatro da Candelária": três décadas depois, quase nada mudou para jovens negros no Brasil DIVULGAÇÃO
Ouça este artigo
00:00
07:41

Os artigos da equipa do PÚBLICO Brasil são escritos na variante da língua portuguesa usada no Brasil.

Acesso gratuito: descarregue a aplicação PÚBLICO Brasil em Android ou iOS.

Desde que estreou na Netflix, no final de outubro, a série brasileira Os Quatro da Candelária tem arrebatado o público e a crítica. Em Portugal, nas duas primeiras semanas, foi a obra mais vista do streaming. A história marcante dos meninos que morreram em uma chacina, em 23 de julho de 1993, provoca tristeza, mas, ao mesmo tempo, revolta, pois, apesar de passadas três décadas do crime, praticamente nada mudou no Brasil. Crianças continuam morando nas ruas e meninas e meninos negros permanecem no topo das estatísticas de mortes violentas no país.

“Falhamos como sociedade, como modelo de desenvolvimento, quando acreditamos no mito do homem cordial num Brasil muito violento”, diz Luís Lomenha, 46 anos, criador, roteirista e diretor da produção. Para ele, não se trata de uma questão armamentista, pois o país é violento no trânsito, contra as mulheres, em relação à população LGBTQIA+, aos negros, aos indígenas, aos ciganos. “Temos um país que sempre defende os mesmos. A sensação é de defesa eterna do rei da corte e de seus súditos mais próximos, que são, em grande maioria, pessoas brancas, de famílias abastadas”, complementa. “Isso segue intacto.”

Lomenha, que nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, neto de avô espanhol, das Astúrias, e de avó portuguesa, de Viseu, conta que a série, de quatro episódios, não é 100% realista e narra as 36 horas anteriores à chacina da Candelária sob o olhar de quatro crianças. “Trata-se de uma narrativa muito ousada, uma ressignificação da história desses personagens, do que se passou. Também é uma forma de humanizar e devolver a infância daquelas crianças que tiveram isso roubado de alguma maneira”, afirma. Não só. “A série tenta trazer um frescor para um caso tão complexo e tão doloroso para o Rio de Janeiro e para o Brasil”, frisa.

A ideia de fazer Os Quatro da Candelária surgiu durante a produção de um documentário dirigido por Lomenha sobre mães que perderam os filhos em chacinas. A primeira foi a de Acari. Depois, a da Candelária, a de Vigário Geral e a da Baixada, esta já o início do século XXI. “Passei a conviver muito com os familiares das vítimas. Isso me motivou a contar a história de ficção do ponto de vista das crianças, pensar como uma criança vê a rua, como pensa o mundo”, lembra. Para ele, o expectador se identifica com essa visão, porque todo mundo um dia foi criança, todo mundo tem sonhos, como um quarto confortável, com uma cama e não uma calçada para dormir. “Esses sonhos foram interrompidos”, destaca.

Massacre histórico

Não por acaso, acredita o cineasta, que cursa doutorado em arte contemporânea na Universidade de Coimbra, é o público jovem, das periferias, que vem liderando a audiência da série. “Temos um público abaixo dos 30 anos, que não era nascido na época do massacre. Eu era adolescente, e o caso me marcou muito. Morava na periferia, mas fazia tudo no centro da cidade, onde está a Candelária”, assinala. Para fazer a ligação com os dias atuais, a obra mostra, em primeiro plano, o ano de 1993. Depois, as imagens são contemporâneas, do Rio de Janeiro das Olimpíadas, para mostrar que os problemas seguem o mesmo, com elevados índices de homicídios de jovens negros.

A série reconta a história da construção da Igreja da Candelária, 400 anos atrás. “Muito sangue foi jorrado ali. A igreja tem um histórico colonial, de massacre dos ancestrais dos jovens que estavam na calçada quando foram mortos. O porto da cidade, por onde chegavam esses ancestrais escravizados, fica a 150 metros da Candelária. Ali tinha um mercado de escravizados e bem próximo, o Cemitério do Valongo (onde os negros eram enterrados). Isso, sem dúvida, é algo que nos conecta com um passado que já era trágico”, diz Lomenha, cuja mãe é branca e o pai, negro. “A barbárie naquele território é muito anterior ao massacre da Candelária. A modernização da cidade, entre aspas, é uma forma de vermos o quanto a mesma população segue à margem, vulnerável”, ressalta.

Foto
Luís Lomenha, autor e diretor de "Os Quatro da Candelária" conta que a ideia da série nasceu do convívio com mães cujos filhos foram mortos em chacinas Divulgação

A despeito dessa realidade cruel, o cineasta assegura ter fé nas novas gerações do Brasil, que vêm com uma visão muito diferente da relação entre ter e ser. “Elas estão mais interessadas em ser do que ter. Isso é motivador”, afirma. Ele reforça tal percepção com base no retorno do público da obra. “A série tem várias menções às religiões afro-brasileiras, e recebemos muitas mensagens de jovens evangélicos elogiando a obra e discutindo questões sociais e uma série de pontos. Por isso, sinceramente, tenho muita esperança, e mais na juventude do Sul global do que na do Norte, porque as relações humanas são mais profundas, calorosas, afetivas e verdadeiras”, assinala.

Essa diferença, inclusive, se reflete na política. No entender de Lomenha, a juventude brasileira, em maioria, não embarcou no discurso na extrema-direita, como se vê em boa parte da Europa. “Tivemos, há dois anos, uma eleição federal, e foi a juventude a grande responsável pela não vitória da extrema-direita. Nas recentes eleições municipais, os partidos de centro-direita venceram. O que se viu foi uma derrota tanto do governo (comandado por Lula da Silva) quanto de Jair Bolsonaro”, frisa.

Ele vai além: “Não vejo adesão total da juventude brasileira à extrema-direita. O que percebo é um desprezo das forças progressistas em relação à juventude da periferia. Há uma desconexão, um desrespeito, uma arrogância e um distanciamento cada vez maior desse público, que vai se alimentando de outras correntes”.

Filme de ação

São muitos os planos do cineasta, um deles, concluir o doutorado em Coimbra até março do próximo ano. “Vou aproveitar o inverno para terminar a minha tese”, diz. Ele lembra, por sinal, que a mudança para Portugal foi uma espécie de autoexílio, devido às eleições de Bolsonaro. Parte do roteiro de Os Quatro da Candelária foi escrito em solo português. O cineasta, porém, pretende retornar para o Brasil dentro de, no máximo dois anos, depois de a filha concluir o ensino médio. “Ela me pediu esse tempo, pois moramos em vários países nos últimos anos, nos Estados Unidos, na Alemanha. Quer parar um pouco”, frisa.

Em paralelo ao doutorado, Lomenha está escrevendo o roteiro de um filme de ação para um estúdio norte-americano, a Warner, que se passará na periferia do Rio de Janeiro. A meta é que a história esteja concluída em fevereiro, para que as filmagens ocorram ainda em 2025. “Vou dirigir o filme, que tem produção da O2, de Fernando Meirelles. Será um grande desafio esse trabalho”, assinala. Ele também está com um projeto em andamento na Espanha. “Em Portugal, ainda não desenvolvi nada, mas tenho gostado muito do novo cinema português, que tem se mostrado bastante promissor”, diz.

O cineasta não esconde, porém, a vontade de contar a história de Vicente Lusitano, um músico barroco português negro, pós-Idade Média, que foi expulso de Portugal e mudou-se para Roma, de onde também foi mandado embora. Ele se converteu ao protestantismo ao se mudar para a Alemanha. “Acho que falta um pouco dessas histórias medievais em Portugal e na Espanha”, destaca. “Pode ser que saia uma parceria com os alemães para essa obra”, antecipa.

Sugerir correcção
Comentar