Uma caminhada numa mata ajardinada da Madeira, que é um abraço à laurissilva
Desde 2019 que o Campo de Educação Ambiental do Santo da Serra, na Madeira, está a ser recuperado com flora da laurissilva. Fomos conhecer o lugar, a partir do olhar do geógrafo Raimundo Quintal.
Situado entre os 500 e 600 metros de altitude, é preciso subir entre curvas mais ou menos apertadas para chegar ao Campo de Educação Ambiental do Santo da Serra – Eva e Américo Durão, em Santo António da Serra, no concelho de Santa Cruz, na região leste da ilha da Madeira. Numa tarde de Outono, isso significa abandonar o Verão da costa Sul da ilha e entrar no mundo mais fresco de árvores e trilhos. É lá que está a acontecer uma espécie de abraço à floresta da laurissilva.
Raimundo Quintal espera-nos na entrada do Campo, passado o portão. O investigador reformado da Universidade de Lisboa é geógrafo especializado em fitogeografia, um grande conhecedor da flora da Madeira e é o presidente da Associação dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal. A quinta, que pertencia a Américo Durão (1894-1984), cirurgião importante na Madeira, foi doada à associação em Abril de 2019 pela sua mulher, Eva Durão (1930-2019), que morreu dois meses depois.
Desde então, o lugar está a ser transformado para acolher todas as espécies da laurissilva: árvores, arbustos e herbáceas. “Isto é um trabalho muito grande. São cerca de nove hectares, é uma propriedade muito grande”, diz o especialista ao PÚBLICO, que tem pouco mais de uma hora para visitar os quase nove hectares, o que dá necessariamente um ritmo acelerado à visita. Por isso, com uma energia contida, Raimundo Quintal arranca a caminhada, apontando sempre para as espécies vegetais ao seu redor, pronto para partilhar o seu conhecimento sobre a flora que vive ali e a sua importância no contexto ecológico da Madeira.
A relíquia da Madeira
A floresta da laurissilva era abundante no Sul da Europa antes de se iniciar o ciclo de glaciações do Quaternário, há 2,58 milhões de anos, que tornou o clima demasiado frio para a manutenção daquele bioma. Mas a laurissilva continuou a existir na Madeira e em outras ilhas da Macaronésia (que inclui os arquipélagos dos Açores, da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde). Por isso, apesar de toda a desflorestação que a Madeira sofreu desde a chegada dos portugueses, no século XV, o que resta da laurissilva é único.
“A flora da Madeira, bem como das Canárias, um pouco menos a dos Açores e Cabo Verde, é uma relíquia. Esse conjunto de espécies manteve-se aqui graças à influência moderadora do oceano, mas ele existia no Sul da Europa e no Norte de África”, explica Raimundo Quintal.
Sobretudo nas vertentes do Norte da ilha, entre os 300 e os 1300 metros, há um universo verde, perene, constitutivo da ilha, que tem uma grande importância na retenção de água que alimenta todo o território e as populações da Madeira. Em 1999, há 25 anos, aquele bioma foi considerado património mundial natural da UNESCO. Quem caminhar por uma das muitas levadas que atravessam a laurissilva pode aproximar-se daquele mundo verdejante e húmido, com plantas de diferentes portes sobrepostas nos declives, que tudo envolvem.
No jardim do Campo de Educação Ambiental do Santo da Serra o pensamento humano impera e não se consegue recriar o que existe no mundo natural. “Isto é uma mata ajardinada, por muito que trabalhemos não conseguimos ter um ecossistema prístino”, dirá mais adiante Raimundo Quintal. “Não vale a pena andarmos com esses truques, com essas ilusões. Nós estamos a trabalhar para recuperar a laurissilva, mas deixamos alguns exemplares pela sua monumentalidade. Este pinheiro”, aponta, “seria uma estupidez cortar, é uma árvore fantástica”.
Seleccionar, retirar e plantar
A entrada do Campo situa-se numa zona mais alta daquele espaço, de onde saem dois trilhos por onde a visita começa. Pelo meio, o horizonte fecha-se com muitas árvores. Raimundo Quintal vai começando a falar sobre o que vê. “Aqui temos o folhado [Clethra arborea], que não tem nada que ver com o folhado do continente, aqui temos o pau-branco [Picconia excelsea], o aderno [Heberdenia excelsea], que também não tem nada que ver com os adernos do continente. Temos dois azevinhos, um que é exclusivo da Madeira, e temos também e vamos poder ver a ginjeira-brava, muito parecida com a do continente, mas é uma subespécie da Madeira, o Prunus lusitanica subespécie hixa”, relata.
O termo laurissilva remete para as lauráceas. O loureiro (Laurus novocanariensis), o barbusano (Apollonias barbujana), o til (Ocotea foetens) e o vinhático (Persea indica) são as quatro espécies da família das lauráceas e que dominam aquela floresta.
Mas há muitas outras espécies. “Uma delas é uma conífera, o cedro-da-madeira (Juniperus cedrus), que tem uma madeira fantástica e devido a essa madeira praticamente desapareceu da natureza”, diz o perito, explicando que foi com esta madeira que se construiu o tecto da Sé do Funchal. “Aqui, neste momento, temos mais de um milhar de cedros-da-madeira, entre uns jovens adultos e outros novinhos”, explica.
O investigador também chama a atenção para as plantas mais pequenas, como o massaroco (Echium candicans), o isoplexis (Isoplexis sceptrum), o piorno (Genista tenera) e o tangerão-bravo (Musschia wollastonii), que estão junto ao trilho. Mais adiante, explica a situação da faia-das-ilhas (Morella faya), que é muito diferente da faia-europeia (Fagus sylvatica). “Os madeirenses ou, possivelmente, os açorianos levaram-na para o Havai e hoje é uma invasora no Havai. Nós, aqui, naturalmente que a protegemos. Mas ela não precisa de ser plantada”, diz. Já a árvore-de-incenso, o Pittosporum undulatum, árvore australiana introduzida no continente, nos Açores e na Madeira, que se tornou uma invasora, está a ser retirada do Campo.
As acções são feitas normalmente pelos associados que, em forças-tarefas, vão trabalhando o campo. “O nosso primeiro grande trabalho foi seleccionar o que havia de ficar e limpar o que não devia ficar. Agora estamos na fase de introduzir o que faltava e de aumentar os contingentes daquelas espécies que estavam com populações muito baixas”, explica Raimundo Quintal. “Estamos a contribuir para que se tenha aqui um banco genético.”
O aipo-do-gado (Melanoselinum decipiens) é uma das herbáceas que têm sido plantadas pelo jardim. “Ela vive dois anos, no primeiro cresce, no segundo floresce e produz sementes. Nós lançamos as sementes”, diz.
Natureza com ternura
O trilho termina numa descida onde surge uma área aberta com um roseiral no centro. Todo o terreno foi comprado por Américo Durão para a caça. Mas quando não havia caça, o cirurgião usava aquela área aberta para fazer tiro ao prato.
Ao redor da área aberta, logo do lado esquerdo, há um canteiro com plantas aromáticas e medicinais. Do lado direito fica uma casa reabilitada que faz lembrar uma casa de Santana, com os seus telhados compridos, mas Raimundo Quintal assegura que não é. Lá dentro há um pequeno espaço expositivo com a história da associação. No andar de cima, uma colecção de livros está disponível para quem quiser consultar. O Campo tem actividades programadas, com visitas de até 30 pessoas.
Mais à esquerda, do lado oposto da casa, avistam-se eucaliptos altos entre a flora madeirense, mais baixa. Tal como em Portugal continental, o eucalipto também foi introduzido na Madeira em copiosas monoculturas. “Cortámos cerca de 50% dos eucaliptos e estamos a fazer uma experiência, que não é propriamente um restauro de laurissilva”, explica Raimundo Quintal. “Estamos a tentar obrigar os eucaliptos a viverem com espécies da nossa flora, tentar mostrar que é possível contrariar a monocultura do eucalipto”, adianta, com uma ponta de ironia.
Continuamos a caminhada do lado oposto ao que chegámos e vamos descendo para a zona baixa do Campo. Raimundo Quintal vai falando do tangerão-bravo, da uveira (Vaccinium padifolium), que produz bagas com que se faz compota, uma produção que a associação tem mantido, da ameixeira-de-espinho (Berberis maderensis) e da estreleira (Argyranthemum pinnatifidum), parente dos crisântemos. “Na Madeira e nas Canárias, os crisântemos ganharam um gigantismo, o género Chrysanthemum não existe, cá foi criado o género Argyranthemum”, revela.
Depois de uma descida, o ambiente vai-se tornando cada vez mais silvestre, de uma paisagem antiga e húmida. Há enormes carvalhos-alvarinhos (Quercus robur), originais do continente, alguns deles já mortos, grandes loureiros e fetos arbóreos altos e bonitos, vindos da Austrália, que têm de ser controlados, para evitar o risco de se tornarem invasores.
Mais adiante, depois de uma curva, Raimundo Quintal aponta para um encontro inusitado entre duas árvores altas, em que o ramo de uma dá a volta ao tronco de outra, num abraço. “Quando andámos aqui a fazer uma limpeza, encontrámos este carvalho abraçado ao loureiro. No fundo, deu-se um abraço da flora ibérica com a flora da Macaronésia”, diz o investigador. O encontro vegetal alimentou a imaginação da associação: “Entretanto, o carvalho já está morto e o loureiro compensou com o lançamento de um novo ramo. A expressão-chave aqui do Campo é ‘natureza com ternura’, inspirado ali no abraço.”