Todo rei será perdoado!

Mitos orientam e dão significado a nossas vidas, educam a alma e inculcam virtudes, transformam o cultural em natural e controlam e ordenam o imenso panorama contemporâneo de futilidade e anarquia.

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Ouço, numa mesa de bar literária, nessas noites atuais de Lisboa, em que brasileiros confraternizam animados, como se estivessem diante de um Novo Descobrimento, esse em sentido inverso, que a Bíblia não é digna de ser lida. Exato. O livro mais impresso, distribuído e lido da história — e o mais vendido no Brasil no ano passado, período de trevas em que a venda de livros decaiu acentuadamente — não encontra o consentimento do meio literário. Como podemos, estetas agnósticos, dividir um encantamento com evangélicos?

Mesas de bar são mesas de bar, no Bairro Alto de Lisboa ou em Lagoinha, em Belo Horizonte, e opiniões literárias dizem mais sobre quem opina do que sobre a obra. Isso sabemos, há milênios, mas temos tido novidades sobre o “texto religioso mais antigo do mundo”.

A começar, que se trata, cada vez menos, do mais antigo. É próprio de textos criacionistas, como o Velho Testamento, que explicam as origens e a condição humana, se colocarem como o embrião narrativo do mundo, os pais verdadeiros, severos e autoritários, de todas as histórias que vieram depois.

Ocorre que pais têm pais, têm avós, têm bisavós — e escavações na região da antiga Mesopotâmia, onde floresceram as civilizações sumérias, babilônicas e assírias, no território que é hoje o Irã e o Iraque, não cessam de revelar uma profusão de histórias talhadas em cuneiforme em placas de argila, o que tem provocado movimentos tectônicos na cultura, descobertas que chegam, por ora, além de 3.000 a.C.

No barro, descobrimos, perplexos, em mitos da criação, mitos do dilúvio e histórias de pactos, protagonistas com a mesma dimensão arquetípica e que enfrentaram provações dignas das de um Abraão, de um Moisés, de um Noé. O Gênesis, cuja influência transcende a religião, impactando filosofia, literatura, arte, ética e ciência, não surgiu na escuridão.

Há traços de Jeová em deuses como Marduk, no épico babilônico Enuma Elish (1.700 a. C.): ambos lutaram contra forças primordiais e impuseram a ordem patriarcal sobre o cosmos; o dilúvio bíblico tem semelhanças impressionantes com as inundações redentoras de Atrahasis e da Epopéia de Gilgamesh, poemas épicos que o antecedem em quase dois mil anos.

Há mais do que indícios de que os hebreus beberam da herança cultural e teológica mesopotâmica durante o cativeiro babilônico (586 a. C. — 538 a. C), período em que os escribas que compuseram boa parte do Velho Testamento estavam na mesma Babilônia em que circulavam versões do Enuma Elish e do Atrahasis, escritas após séculos de transmissão oral.

O que emerge em cuneiforme, e a inteligência artificial tem contribuído para que seja decifrado, são civilizações sofisticadas, interligadas pelo fluxo de comércio e cultura, um repositório de parábolas, símiles, épicos e deuses compondo um berço narrativo polissêmico que se espraiou nos textos das grandes religiões monoteístas, como a Bíblia.

Convém, portanto, estar atento a certas leituras; principalmente, a certas interpretações. Mitos orientam e dão significado a nossas vidas (Campbell), educam a alma e inculcam virtudes (Platão), transformam o cultural em natural (Barthes) e — atenção — controlam e ordenam o imenso panorama contemporâneo de futilidade e anarquia (Eliot).

Nas mesas do Bairro Alto, nem todos sabem disso. Porém, na Igreja Batista da Lagoinha, onde é forjado, entre epifanias e louvores, o domínio celestial e terreno, muitos o compreendem em toda potência e esplendor. Lá, possivelmente, Trump é Davi, Bolsonaro é Davi, Damares é Davi — não importa o que digam ou façam, como diz João Cezar Castro Rocha, como estupros, genocídios ou planos de assassinatos. Reis ungidos sempre serão perdoados.

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