“Nunca pensei que um dia não restassem mais Abdelmoneim no Sudão”
O chefe de equipas médicas da MSF alerta para os problemas causados pelas mudanças climáticas na gestão dos cursos de água.
Quando a guerra rebentou no Sudão, Javid Abdelmoneim foi para Cartum. “O dia em que eu estava a voar para lá foi o dia em que o meu pai deixou o Sudão”, conta o responsável da Médicos sem Fronteiras (MSF). A família Abdelmoneim é sudanesa.
Quando falou com o PÚBLICO, a caminho da Web Summit em Lisboa, Abdelmoneim estava prestes a partir de novo para a capital do Sudão. O pai continua no Reino Unido. “Já não tenho família no Sudão. Nunca imaginei que isso pudesse acontecer. Nunca pensei que um dia não haveria nenhum Abdelmoneim no Sudão. Mas agora já não há. Sinto um arrepio na espinha – toda a minha família é agora refugiada”, diz.
“[Claro que] temos dinheiro e temos enormes privilégios e muitos de nós tiveram acesso a uma segunda nacionalidade”, contrapõe. Mas ainda assim há coisas por que todos tiveram de passar, o pai de Javid Abdelmoneim teve na mesma de “atravessar o deserto até ao Egipto e passar três dias a dormir na fronteira e passar por um processo de saída muito difícil”.
Algo que, sublinha, a maioria dos sudaneses não tem hipótese de fazer. “A maior parte só pode deslocar-se internamente.” Isso faz com que exista uma enorme crise de pessoas deslocadas. “É a maior do mundo, é um desastre”, sublinha.
Em Lisboa, na Web Summit, a MSF teve um stand precisamente sobre o que leva as pessoas a sair dos seus países para procurar um futuro melhor. E como coordenador de um projecto no Reino Unido para apoio a pessoas que procuram asilo, Abdelmoneim habituou-se a ouvir dúvidas sobre este tipo de missões e a ouvir se os MSF não estavam a “levar pessoas no táxi” para a Europa.
Ele próprio tinha algumas dúvidas, conta, sobre esta actividade feita por uma organização cuja missão é prestar cuidados de saúde. Teve, entretanto, oportunidade de participar numa missão num navio da MSF de resgate e apoio a pessoas no mar Mediterrâneo. E quando esteve algumas semanas no navio percebeu que fazia todo o sentido a MSF estar ali, e que ninguém partia da Líbia a achar que ia ser “levado no táxi” das organizações humanitárias que fazem salvamentos no mar.
“As pessoas não têm noção nenhuma. Entram no barco, porque os contrabandistas lhes dizem: ‘Entrem, aqui está um motor de cinco cavalos, vão atravessar o mar e amanhã estarão em Itália.’ E elas iam. E claro que isso é mentira. Não é assim, e vão todas morrer.”
As que são salvas chegam ao navio da MSF depois de um caminho pela Líbia onde foram sujeitas a “tortura, detenção, espancamentos, escravatura, violações, abusos”, conta Abdelmoneim. “E aí compreendi realmente a necessidade médica que é, acima de tudo, o que fazemos bem.”
Portanto, resume, “as políticas de externalização [da União Europeia e Reino Unido] não funcionam, e causam dano”. “[Por isso,] na nossa opinião, esta é uma dupla razão para não o fazer.”
Além disso, cada vez mais há acções que são ilegais a ser postas em prática em relação a requerentes de asilo e refugiados. Ainda em relação ao Reino Unido, Javid Abdelmoneim sublinha que o modo como o país está a tratar os requerentes de asilo é, “diz até o ACNUR, contrário ao espírito e à letra da lei!”
O actual chefe de equipas médicas da MSF conta também como esteve em cenários onde viu ainda as alterações climáticas causarem problemas, por exemplo, no Chade, onde as mudanças no clima afectam os cursos de água, e estão a levar os pastores da região a disputar água com os agricultores. “Naquela parte do mundo, os pastores são em geral de origem árabe e muçulmanos e os agricultores de origem africana e cristãos”, conta, o que faz com que uma luta pela água entre um pastor e um agricultor se transforme num conflito entre tribos. “E de repente há 30 mil pessoas a fugir.”
Outro exemplo é a República Democrática do Congo, onde a transição verde significou um aumento de extracção de cobalto e lítio, o que está a gerar conflitos.
E se no actual ambiente político é difícil ver que haja um reconhecimento dos chamados “refugiados climáticos”, certo é que as pessoas irão continuar a mover-se e a procurar a sua segurança.