Fisco trata IVA dos serviços de saneamento de forma distinta, provedora pede mudança
Quando os serviços de saneamento são prestados por entidades públicas, não se aplica IVA, mas quando são providenciados por concessionários privados já se aplica IVA de 6%.
A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) está a aplicar de forma incorrecta o IVA às prestações dos serviços de saneamento de águas residuais, o que levou a provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, a fazer uma recomendação à administração fiscal para que reveja a interpretação que faz de uma norma do código do imposto para garantir que os consumidores são tratados de forma igual, independentemente de serem servidos por entidades públicas ou concessionários privados.
O ofício foi dirigido à directora-geral, Helena Borges, na semana passada e foi divulgado pela provedora nesta quinta-feira.
A AT entende que, quando os serviços de saneamento são assegurados por entidades públicas, não se aplica IVA, ao contrário do que acontece quando os serviços são prestados por concessionários privados, em que se aplica a taxa de IVA de 6%.
Como o Código do IVA prevê (no artigo 2.º) que o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público não são sujeitos passivos de IVA “quando realizem operações no exercício dos seus poderes de autoridade, mesmo que por elas recebam taxas ou quaisquer outras contraprestações, desde que a sua não sujeição não origine distorções de concorrência”, a AT entende que é o caso do saneamento de águas residuais providenciados por entes públicos (havendo um ofício do fisco nesse sentido, com argumento de que se verificam os dois critérios necessários — poderes de autoridade e neutralidade do ponto de vista da concorrência).
No entanto, a provedora de Justiça considera que a interpretação “é incoerente com o sistema jurídico e gera desigualdades injustificadas entre consumidores”. Por isso, recomenda aos serviços da AT que deixem de fazer esta interpretação, porque está “desprovida de fundamento substancial de justiça” e é “desadequada face aos imperativos da boa administração.”
A provedora considera duvidoso, desde logo, que se considere, como faz o fisco, que os serviços públicos de saneamento exerçam “poderes de autoridade” (um dos critérios que fundamenta a exclusão do IVA). E acrescenta que “as dúvidas, logo iniciais, vão crescendo à medida que se for fazendo uma leitura conjunta” das normas, começando pelo que diz a Lei da Água.
Segundo a provedora, quer o direito europeu, quer o direito português consideram que a prestação destes serviços pelas entidades públicas “não constitui exercício de poderes de autoridade, ao contrário do assumido pela AT na sua interpretação”. E prova-o também o facto de os litígios entre entes públicos e destinatários de serviços de saneamento serem hoje “e desde 2019” dirimidos nos tribunais judiciais. “Uma vez que os tribunais administrativos são o lugar natural de contestação do exercício de poderes de autoridade, a sua incompetência para julgar” os diferendos “significa, afinal, que o legislador reconhece que não há associação entre os serviços de saneamento de águas e o exercício desses poderes”.
Para a provedora, é ainda preciso ter em conta o que dizem as próprias regras europeias do IVA. As entidades públicas não são sujeitos de IVA relativamente às operações “que exerçam na qualidade de autoridades públicas” e, para isso existir, assinala a provedora, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia vai no sentido de dizer que só existem actuação de autoridades públicas quando a actividade é exercida de forma exclusiva por entes públicos. “Ora, é manifesto que em Portugal tal não ocorre.” O fornecimento “tanto pode ser levado a cabo por entes públicos quanto por concessionários”, aplicando-se a ambos o mesmo regime jurídico.
Além desta questão, impunha-se saber se o segundo critério também se verifica. E a provedora entende que não. O Tribunal de Justiça, faz notar, considera que só é “concorrencialmente neutra” uma não incidência de IVA se as distorções à concorrência no mercado único daí geradas forem insignificantes; caso contrário, as operações estão sujeitas a IVA. E, em Portugal, não se aplicar IVA sobre os serviços de saneamento providenciados pelas entidades públicas “implica uma diferenciação entre os preços por estes definidos e os fixados pelos concessionários”, que têm de repercutir o IVA a 6% nos clientes finais. E a diferença “pode influenciar as decisões dos consumidores e ter um impacto não insignificante, real ou meramente potencial, na concorrência entre públicos e concessionários”. Por isso, também este critério “não se mostra verificado”.
Com base nestes fundamentos, Maria Lúcia Amaral pede que a AT revogue a doutrina fixada no ofício actualmente em vigor sobre o assunto e que adopte um “novo olhar” sobre a doutrina. Para continuar a acompanhar o assunto, pede que Helena Borges lhe confirme dentro de dois meses que posição é que o fisco assumiu.