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Ciganos húngaros vendem o próprio sangue para escapar à pobreza
"Empresas privadas encontraram uma nova forma de gerar lucro a partir do desespero da população mais marginalizada da Hungria, os ciganos." Béla Váradi documentou um negócio que prospera na pobreza.
Béla Váradi é um fotógrafo húngaro, de etnia cigana, a viver em Inglaterra há 13 anos. Em 2023, numa das suas visitas à sua aldeia natal, no leste da Hungria, deparou-se com um fenómeno que era, para si, até então, desconhecido. “Viajava de camioneta com a minha irmã e pela janela vi uma pequena multidão em frente a um edifício”, relatou ao P3, numa videochamada a partir de Londres. “Perguntei-lhe o que é que estava a acontecer e ela respondeu-me que as pessoas estavam a vender plasma sanguíneo.” Ficou surpreendido. Ao chegar à sua aldeia, percebeu que mais pessoas da sua comunidade, até mesmo velhos amigos, estavam a fazer o mesmo. “Alguns deles estavam bastante obcecados com isso. Iam regularmente às clínicas, por vezes quatro a cinco vezes por semana.”
Na Hungria, o cidadão comum pode dirigir-se a uma das mais de 50 clínicas especializadas que operam no país e, a troco da “doação” de 0,8 litros de sangue, receber quase 20 euros. Por conseguinte, “uma nova economia está a florescer – com base em sangue humano”, escreve o fotógrafo húngaro num artigo publicado recentemente pelo jornal britânico The Guardian. “Empresas privadas encontraram uma nova forma de gerar lucro a partir do desespero da população mais marginalizada daquela região, os ciganos. Para muitos deles, vender plasma [sanguíneo] tornou-se uma tábua de salvação, um meio de sobrevivência num cenário de desemprego e pobreza crónicos.”
O plasma é matéria-prima para a produção de medicamentos que têm como objectivo o tratamento de hemofilias, imunodeficiências primárias, doenças auto-imunes, etc.; cerca de 80% do plasma disponível globalmente tem origem em apenas cinco países — EUA, Áustria, República Checa, Alemanha e Hungria —, onde a lei permite que empresas privadas, quase sempre multinacionais, paguem aos dadores pelas colheitas. “Este é um negócio associado à pobreza”, explica Béla Váradi. “No leste da Hungria, os dadores são sobretudo membros da comunidade cigana, porque estes compõem a maioria da população naquela região marcadamente pobre.”
Existem regras inscritas na lei húngara para a “doação” de plasma que têm como objectivo a protecção da saúde do dador. “Não existe fiscalização, a lei não é cumprida”, afirma Váradi. Cada dador estaria limitado por lei a efectuar apenas duas colheitas por semana, com intervalo de 72 horas; porém, não existe um mecanismo de partilha de informações entre centros de colheita de plasma, motivo pelo qual um dador poderá visitar diferentes clínicas em diferentes dias da semana sem que, oficialmente, a infracção seja detectada. A partir da observação das picadas nos braços dos utentes, tão presentes no trabalho fotográfico de Váradi, qualquer profissional de saúde conseguirá inferir o momento em que o dador terá realizado a última colheita, porém esses indícios são deliberadamente ignorados com o objectivo de maximizar o lucro, observa o fotógrafo.
Existe um lado ainda mais obscuro deste negócio, comummente publicitado, justa e injustamente, como “salva-vidas”. Se, por um lado, a quantia em dinheiro que os “dadores” recebem está fixada por lei, por outro, os sistemas de incentivos não pecuniários estão omissos. “Em resultado, os centros de colheita criaram cartões de acumulação de pontos com recompensas com base no número de colheitas”, escreve Béla. “A cada décima, vigésima ou trigésima visita, os ‘dadores’ recebem vouchers de desconto ou cupões para o sorteio de prémios como trotinetes eléctricas ou televisões de plasma (trocadilho intencional).”
O fotógrafo considera esse sistema perverso. “Implementando um mecanismo em muito semelhante ao dos jogos de azar, as empresas conseguem que mais e mais pessoas adiram às colheitas.” Assim, muitos “dadores” de plasma chegam a viciar-se no processo, acabando por doar muito mais vezes do que aquelas que seriam recomendáveis para a sua saúde. “Muitas pessoas de etnia cigana sentem, ao doar plasma, que, pela primeira vez estão a contribuir com algo de útil para o seu país”, refere Béla, aludindo para a discriminação de que são vítimas as pessoas das comunidades roma, na Hungria. “Conseguem, com isso, ao mesmo tempo, dinheiro para alimentar as suas famílias. No entanto, quanto mais frequentes são as ‘doações’, maiores são os riscos para a saúde de quem as pratica.” Desmaios, perda de cabelo, sistema imunitário debilitado são alguns dos efeitos nefandos do abuso das colheitas de plasma referidos por Váradi. “Algumas pessoas chegam a doar quatro ou cinco vezes por semana.”
Quem figura no projecto All I Can Give You Is My Blood (tudo o que posso dar-te é o meu sangue, tradução livre), prefere, por norma, manter o anonimato. “Muitas destas pessoas mal têm dinheiro para comer”, observa o fotógrafo. “Por isso, a venda de plasma está associada a vergonha e estigma.” Recorda os retratos que fez de mãe e filha, em Pétervására. “Fotografei-as dentro de casa. Os brinquedos de plástico barato que estão nas imagens foram comprados pela mãe com dinheiro que obteve nas colheitas de plasma. É muito triste.”
Os EUA são o maior “produtor” mundial de plasma. A exportação desse insubstituível líquido amarelo gerou, em 2022, 37 mil milhões de dólares de lucro, mais do que aquele que é gerado a partir da venda de carvão ou de ouro no país, escrevia o The Economist, em 2023. No que toca a estratégia comercial, as empresas que operam na Hungria parecem ter replicado o modelo norte-americano: os centros de colheita de plasma dos EUA concentram-se em zonas pobres ou cidades universitárias, onde a privação impele mais pessoas às “doações”.