Sempre presente: este seria o 80.º aniversário de António Variações
Visionário e singular, morreu precocemente antes de completar 40 anos. A Universidade Nova de Lisboa recebe, nos dias 5 e 6, um colóquio para o celebrar e para reflectir sobre o Portugal em que viveu.
Uma pedrada no charco. Uma figura à frente do seu tempo a questionar o seu tempo, a querer outro tempo. António Variações. Nome lendário da música portuguesa, nasceu há precisamente 80 anos numa aldeia em Amares, distrito de Braga. Vai haver um colóquio para celebrar o seu legado — e reflectir sobre qual foi o Portugal em que viveu. Acontece esta quinta e sexta-feira, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
“Variações em torno de António”, assim se chama a conferência, organizada pelas académicas Catarina Pimentel Neto e Manuela Gonzaga, a última das quais é a biógrafa de Variações. “Que país era Portugal nas décadas de 1940, 1950, 1960 e 1970 até ao fim do regime que antecedeu Abril de 1974? (...) A homossexualidade era crime. O divórcio proibido. A emigração (do campo para a cidade) e imigração (quase toda clandestina) eram uma realidade cujos números reflectem, num país esmagadoramente rural, a colossal ‘sangria de gentes’ em busca do pão para a boca. O serviço militar obrigatório atirava centenas de milhares de jovens, alguns dos quais nunca tinham saído da sua terra, para o Ultramar. Foram os tempos da Guerra Colonial. Silêncios ensurdecedores que, na década de 1980 do século passado, se fizeram música, espectáculo, imagem e afirmação”, lê-se no texto de apresentação do colóquio, que homenageará Variações “ilustrando o desenrolar da sua vida através dos momentos-chave da vida em Portugal e no mundo”.
Pelas várias sessões passarão figuras como Júlio Isidro, Lena d’Água, Vítor Rua (co-fundador dos GNR que depois enveredou pelo trilho da música sem rede), Carlos Maria Trindade — teclista dos Heróis do Mar (e posteriormente dos Madredeus) que, juntamente com Pedro Ayres de Magalhães, guitarrista dos mesmos grupos, produziu o segundo e último álbum de Variações, Dar & Receber (1984) —, Teresa Couto Pinto (a fotógrafa que mais retratou o artista) ou os primos Francisco Vasconcelos e David Ferreira, da Valentim de Carvalho, editora com um lugar diferenciado na história da música portuguesa que lançou os dois discos de Variações — o já referido Dar & Receber e, antes desse, Anjo da Guarda (1983).
“O António toca todas as classes, todo o género de pessoas. É uma figura poderosíssima, que ainda hoje não deixa ninguém indiferente. Deve ser conhecido e falado, pois temos de saber que história é, também, a nossa”, dizia Manuela Gonzaga em Setembro numa entrevista à BLITZ. E acrescentava: “Dos anos 1940 aos anos 1980, há muita coisa que se passa, desde as dicotomias entre campo e cidade à Guerra Colonial, ao trabalho infantil, à imigração… Tudo isso tem muito peso, e as pessoas [desconhecem]. Às vezes, vou às escolas falar e dizem-me: ‘Ah, gosto muito do António Variações’ — mas estão convencidos de que ele ficou famoso porque apareceu com roupas esquisitas e foi à televisão, quando ele tem um trabalho enorme por trás.”
“Além de todos termos Amália na voz, temos todos também o António na nossa voz”, diz o músico Nuno Rafael num texto publicado esta terça-feira no site Comunidade Cultura e Arte. O artigo é uma história oral sobre os 20 anos do disco Humanos, álbum emblemático em que Nuno Rafael, juntamente com Camané, David Fonseca e Manuela Azevedo, fizeram canções completas a partir das míticas cassetes repletas de material inédito que Variações deixou para trás.
Nessa história oral, Nuno Galopim, que em 2004 era jornalista no Diário de Notícias e que foi um dos grandes responsáveis pela concepção dos Humanos (é agora director da Antena 1), diz: “Há que perceber que a relação dos portugueses com a música do António não foi sempre de entusiasmo.” David Ferreira, director-geral da Valentim de Carvalho entre 1983 e 2007, lembra: “Havia um grande preconceito com a doença dele [sida, da qual Variações foi, em Junho de 1984, uma das primeiras vítimas públicas em Portugal] e com a homossexualidade.
Na altura, o Dar & Receber foi um disco que teve uma vida muito difícil porque não recebeu atenção praticamente nenhuma.” Nuno Galopim fala num “processo de reaproximação” que foi acontecendo gradualmente, com versões e tributos de diferentes artistas, e “que se cristalizou definitivamente com o disco dos Humanos”. “O António deixou de ser um artista com dois grandes álbuns e passou a ser um artista com três grandes álbuns”, finaliza David Ferreira.